11.9.08

Sincronicidade

De outro tempo, outro lugar: recebo agora meus exemplares de Último round e A volta ao dia em 80 mundos. Na quarta capa, GGM, autor de nada menos que Cem anos de solidão:
"Havia lido seu primeiro livro de contos ... e desde a primeira página me dei conta de que aquele era um escritor como o que eu queria ser como crescesse."
E, no meu tempo, que não é o do mundo, GGM me plagiou.

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3.6.08

Textos que não escrevi - mas gostaria II

Da dialética ao conformismo - análise política de "Três apitos", "Juca" e "Parei na contramão" a partir do tema da mulher indiferente

A influência do violão de Dorival Caymmi no violão de Gilberto Gil - da canção ao riff

27.5.08

Salmo

Pois tu, Senhor, abençoas o justo e, como escudo, o cercas de tua benevolência.

Salmo 5, 13.

Senhor, sinto que tenho tantos adversários. E não sei bem por quê. Ou melhor, tenho muitas suspeitas. E recorro ao Senhor porque essas suspeitas têm a ver justamente Convosco. Pensam eles, cada um, que minha ações são contra o Senhor. A verdade é que não conseguem enxergar que elas têm por objetivo um bem maior, que também é aquele que guia as criações divinas. Sou apenas um pequeno grão em todo o plano que arquitetais, mas tenho certeza de que sou parte dele, e a maior prova disso é que me ajudais a vencer meus inimigos, golpeais suas faces com insuspeita força por intermédio de meu corpo, minha palavra e meu poder. Prova disso é que jamais me punis, apesar de meus inimigos clamarem em Vosso nome. Prova disso é que só faço chegar mais perto de meu objetivo, apesar das invectivas contra mim. E tenho certeza de que no fim dos tempos levantarei e me mostrareis as conseqüências dos meus atos. "Vês aquele belo lugar, que foi bom para viver? É resultado de tuas ações, de tua coragem para ser impopular, para ser forte e contra as vozes que te acusavem." Isso me direis no fim dos tempos, e eu humildemente aceitarei Vossa companhia ao entrar em meu novo reino, uma parte do mundo novo em que viveis.

Senhor, prova de que estais do meu lado é que todo dia posso colocar a cabeça no travesseiro e dormir tranqüilo, neste que é o único mundo que existe, além daquele que é eterno. Apesar do que dizem, de todas as psicologias e teorias e todos os materialismos, sei que isso prova, sim, pois Vós castigais todos aqueles que estão contra Vosso projeto. Não é outro o motivo de castigardes aqueles que se opõem a mim, e não me castigardes. Não tenho medo dos meus inimigos, pois Vós me protejeis. Em paz me deito e logo adormeço, porque, Senhor, só vós me fazeis repousar em segurança.

Quando perguntam: como pode, alguém como eu segue calmo e realizado, em direção aos meus objetivos, cada vez mais perto, enquanto eles, que se acham justos, sofrem, padecem, se destroem. A resposta é simples. Eles estão contra o Senhor. Não são sinceros, pois não pensam no bem comum e futuro da criação humana. Entre eles a corrupção é profunda e essencial - não um meio para atingir a felicidade da criação, mas uma forma de crescerem mais um pouco, terem um pouquinho mais para o próprio prazer imediato enquanto tentam desviar o mundo de seu destino magnífico. Eles só fazem enterrar, com palavras, aqueles que odeiam, enquanto eu só uso a língua pala Vos louvar. Quando eles entenderem isso, verão que há justiça divina e que eu sou a prova disso.

Eu venho a Vós, Senhor, e sei que serei atendido. Venho pedir que me indiqueis novamente o caminho, que deis novamente a certeza. Porque não é sempre fácil encarar a oposição incansável daqueles que me acusam. Venho pedir que seja renovada a certeza de que estou no caminho que me traçastes. Não estou só porque tenho a Vós como companhia, então preciso que Vos pronuncieis. Não estou triste porque me confortais, então preciso que entreis em minha mente e me façais gozar a vida, de olho na salvação. Não morro, porque me ressuscitareis. Por isso venho pedir Vossa palavra, e vindo de um deus até o silêncio significa.

26.5.08

Textos que não escrevi - mas gostaria

Os diferentes conceitos de passado e futuro em Sergio Porto e Stanislaw Ponte Preta (a bipartição entre criador e criatura não é apenas de humor, mas também de visão de mundo, principalmente em relação ao progresso e de memória).

Ser e agir - uma análise da música "Mulher Barbada", de Adriana Calcanhoto, em que a personagem-título representa aquilo que é (pela aparência), em oposição àquilo que age (domador, trapesista, palhaço)

15.5.08

Leitores

Existem vários tipor de leitores.
Alguns buscam na leitura apenas um passatempo - ou melhor, algo para matar o tempo, se esquecer dos infortúnios da vida.
Outros lêem avidamente, mas sem gosto, como alguém que aprecie andar nas ruas para ver apenas os horrores do mundo e dizer: "Sou melhor do que isso." O contrário disso é aquele que lê como um deslumbrado, como alguém que nunca havia visto um bem tão grande, e por isso, com pudor, se recusa a avaliar o que lê.
Por fim, há aqueles que lêem como um caçador, que olham com alguma atenção o que lhe interessa, mas que abatem, trazem para si apenas aquilo que, sentem, pode fazer diferença em suas vidas, aquilo que é digno de entrar na constituição de seus corpos, mesclar as células com as suas. Mais do que erudição, o que eles buscam é um livro que os impeça de dormir, que os transforme.

25.4.08

Máxima sem pudor

Se fossemos honestos, chamaríamos os taxistas e motoristas particulares de cocheiros: qual outro motivo há para sentarmos no banco de trás (eu, apenas nos táxis), a não ser um resquício estapafúrdio da parafernália aristocráticas das carruagens?

14.12.07

Fragmento III

Hoje, assim como ontem e amanhã, estou preparando meu romance. Até este momento, escrevi umas trezentas palavras - uma a cada dois dias, mais um menos -, mas apaguei todas elas.

Fragmento II

Aos poucos, todo escritor deve aumentar o tamanho dos textos, em busca de escrever seu grande romance.

Fragmento I

Todo escritor deve começar por textos pequenos.

18.10.07

Livros que não escrevi

Como um escritor de talento, espero escrever livros que façam os leitores compreenderem sentimentos únicos, raros, difíceis de apreender. Um deles é o de não se reconhecer:
"Certo dia, pela manhã, Lucas acordou e se viu transformado em um assassino serial."
"Lucas Carvalho acordou pela manhã, certo dia, e não reconheceu seu rosto no espelho. Aquele que o olhava não era o que sentia por dentro."
"Em uma manhã de certo dia, Carvalho despertou transformado em um grande idiota, que havia cometido todas as basbaridades que criticava."
"Despertando certo dia, Lucas Carvalho não mais se reconheceu. Lembrou-se - com estranhamento - que já lera Goethe em javanês e Platão em grego."
"Quem sou eu?, perguntou Samsa de si para si, não fui ao enterro de minha mãe, matei um árabe na praia e não reconheço esses atos como meus. Deus, por que me abandonaste, se sabias que eu era fraco, sem liberdade?"
"Com uma dor de cabeça insurpotável, L. acordou certa manhã e não se reconheceu. Não sentia seu corpo direito, apenas via perninhas finas - mais de duas! - se mexendo a esmo, tentando agarrar algo sólido. L. tentou se lembrar do dia anterior, mas usa mente só conseguia chegar à quinta dose de uísque. Depois, havia um lugar escuro, em que ele deixara de existir."

27.9.07

Tesão por tagarelice

Lembrando mais uma vez o Barthes: existem textos que falam demais, não deixam lacunas para o leitor, e aqueles que exigem que o leitor aja, aqueles cujo sentido só se completa quando o leitor preenche as lacunas.
Bem, outro dia, li uma resenha sobre um livro que "fala de memória". (As aspas porque estou escolhendo abordar apenas um dos temas de que o livro fala.) Um romance sobre como, sem memória (poderíamos dizer, desenraizado, mas nesse caso seria desidentificado, sem identidade), muda a leitura do mundo e ele passa a ser um estranho lugar em que estranhas coisas acontecem a estranhas pessoas - quase como um ficção científica. E aí vem a resenha. (Não seremos levianos a ponto de chamar esses tantos jornalistas de críticos.) E ela diz que falta ao livro, ou melhor dizendo, à personagem (porque é uma protagonista feminina), justamente verossimilhança, i.e., identidade.
Fiquem, pois, com seus caçadores de pipas, seus marleys e suas cabuls infectadas de palradores, seus relatos de guerra que nos deixam apenas o conhecimento de qual é a capital do Azerbaijão ou como se fala "cortou dez cabeças com uma espada" em lituano.

20.8.07

Chamado (exercício)

Ei, você, chegue mais perto.
Venha ver
que estranho
quem será?
está sozinho?

Venha, não se acanhe,
só um minuto antes
de você chegar no trabalho
­de você pegar o metrô
...........................................(é bom deixar a menina esperando, é o segundo encontro)
de você tomar um chope
...........................................(hoje eu disse que ia ficar só uma hora, não posso enrolar)
de você continuar seu caminho.

Fique nas pontas dos pés,
o que você vê é único.
Não tem carta de condolências
comunicado oficial
anúncio
perfil do personagem no estilo jornalismo literário
telefonema.

Comente, converse, esqueça
a parcela da casa
o condomínio
o chefe filho-da-puta que ganha pra caralho mas não faz porra nenhuma
a filha grávida.

Come up from the fields, father, here’s a letter from our Pete,
ali está um pé,
ali deve estar uma barriga,
imagine você sob a lona preta,
não é você.

Agora caminhe olhando para baixo.
E pense.
Obedeça.
Caminhe e pense.
Ouviu?
Já está chegando lá.
Pense.
O que você viu mesmo?
Só mais um pouquinho.
Mas ande.

9.8.07

Mais uma morte da História - apontamento

No livro Amor, pobreza e guerra, encontro uma frasezinha interessante: "Em toda parte, mas em particular nos Estados Unidos, o estudo da História está em acelerado declínio." Estava pensando como, em literatura - e, por razões óbvias, em cinema também -, quase só estudamos e lemos o que está a apenas um século de distância. (O interesse da cultura de massa pela História está muito mais ligado a uma história mítica, como um filme de Hollywood, penso.)
Aí entra um paradoxo: como a história parece andar cada vez mais rápido - possivelmente a revolução informática tem uma importância enorme, como teve a industrial -, temos menos tempo para olhar para trás. Gastamos muito tempo lendo os jornais, nos atualizando (palavra da moda), e não mais nos detemos nos "clássicos", como diziam antigamente.

Semana passada, quando li uma matéria do Prosa & Verso do Globo sobre as influências literárias da nova geração de escritores, achei uma atitude burra a conclusão de que "os novos não são 'estudiosos', não lêem os clássicos". Para mim, era claro que, se você ler Gonçalves Dias e Pessoa, vai ser influenciado pelo português, porque é mais próximo à nossa linguagem, à nossa realidade e ao nosso tempo. Não acho que essa minha conclusão esteja errada, mas penso que há um outro lado: estamos, sim, mais preocupados com a atualização do que com o "diacrônico", poderíamos dizer.

P.S.: Esse papo se estenderia muito, já que muitos e muitos fatores teriam que ser acrescentados, como o estranho fato de que os contemporâneos só são lidos por seus pares. Aparecem muito em jornais, mas não têm público-leitor. (Li um depoimento do Décio de Almeida Prado sobre Mário de Andrade em que ele diz que os modernistas eram muito influentes, mas pouco lidos, e apenas pelos "pares". Acho que isso ocorre com o contemporâneo.)

Machado e Nelson Rodrigues - apontamento

Acho que a admiração que Nelson Rodrigues nutria por Machado de Assis fica bem explicada se compararmos principalmente seus contos - A vida como ela é... - com algumas coisas do "jovem Machado". Estou pensando principalmente no conto "Luís Soares", em que praticamente tudo que o Reacionário usaria depois. Lá estão as "verdades verdades atrozes" - ex.: quando a prima fala "Ele não me ama, nunca me amará" -, sempre cobertas de uma ironia que ao mesmo tempo a desmente. Lá está o final trágico, assim como a idéia de que, pela confiança extremada, o "pai de família" pode trazer a destruição da própria - recurso que Nelson utilizaria obsessivamente nos contos de A vida...
Essa comparação seria útil para reavaliar a prosa de Nelson - que muitos acham superficial - quanto a obra de juventude de Machado - que muitos acham ultrapassada, ao contrário de sua obra da maturidade.

1.8.07

Da vida das marionetes

Acho que a minha melhor "experiência teórica-estética" aconteceu com o Da vida das marionetes. Meu cunhado chegou com uma fita com alguns curtas e "um filme alternativo alemão". Comecei a ver o filme, pensando: cinema alternativo geralmente é sinônimo de tentativas formais auto-referentes, como alguém que quisesse ser o Fassbinder mas não consegue - no Brasil, peseudo-Glaubers.
Como eu não conseguia diferir o sueco do alemão, assisti até o final como se fosse um filme alternativo. (Como Bergman não gastava dinheiro com "produção", é mesmo "alternativo", "indie".) Terminei chapado, tinha visto um daqueles filmes que despertam uma associação de reflexões existenciais e estéticas. Nos créditos, identifiquei finalmente algumas palavras: Ingmar Bergman. Foi assim que descobri que o filme era dele.
Isso foi uma prova "experiencial", quase científica, de que realmente existem textos (filmes, nesse sentido, que seriam textos barthesianos) não-legíveis, que falam pouco, que dão um espaço enorme para o leitor (ou espectador) atuar. (Todos os filmes do mainstream americano são tagarelas, mesmo a marioria dos do Scorcese. Não dão espaço para quem assistem a eles pensar.)
É prova também de que não é só o nome que conta. Comigo aconteceu o contrário do que Paulo Coelho relatou em sua declaração ao jornal O Globo de ontem: não houve coerção da época sobre mim para que eu gostasse do filme, ninguém disse que eu deveria apreciá-lo, eu estava até mesmo com preconceito negativo. Mas vi um dos melhores filmes da minha vida.

22.3.07

Richard Zimler

"Aquilo que mais me lembro dessas manifestações era o profundo desapontamento com os judeus que eu sentia nos esquerdistas franceses. As vozes deles estavam tão roucas de indignação que, quem os visse, pensaria que cada um deles tinha sido pessoalmente traído pelo Sionismo. Eu não conseguia entender porque eles de se sentiam assim — e porque é que eles se manifestavam sempre contra Israel e não contra regimes bem piores em países como a China e a África do Sul — até que, quinze anos mais tarde, li as memórias de Jorge Semprun, Lite­ratura ou Vida. Foi então que compreendi como, para muitos intelectuais europeus, os judeus passaram a representar os explorados e as vítimas em qualquer parte do mundo. Apoiá-los tornara-se uma manifestação evidente de um firme compromisso na luta contra o mal, qualquer que fosse a sua aparência. Na página 36 da edição inglesa, Semprun comenta que criou um amigo judeu num dos seus romances exatamente por essa razão. Escreve ele: «O Judeu — mesmo passivo, mesmo resignado — era a intolerável encarnação dos oprimidos.» Quando li isso, compreendi então o que não compreendera naqueles anos, ao observar aquela manifestação anti-sionista na Place de la Concorde: que os Israelenses, ao rejei­tarem o papel de vítima passiva — a mais tolerante das representações cristãs tradicionais –, rejeitaram ao mesmo tempo os termos de amizade com a esquerda européia. Se Semprun estava certo, então eles tinham rompido um pacto tácito que dizia: gosta de mim por ser brutalizado."

20.3.07

Luis Jorge e a tela em branco

Luis Jorge olhava para a tela em branco. "Agora sai um negócio novo, todo mundo vai comentar. Quero ver o que o Julio vai dizer."
Digitou uma frase. Parou, leu, apagou. "É sempre assim. Demoro para começar, mas depois vai tudo de uma vez. Técnica é o caralho."
Pegou um charuto e deu duas baforadas, embora estivesse apagado. Colocou de volta no cinzeiro, deu uma golada no copo de água gelada e recomeçou. "Essa vai direto pro Júlio", pensava, enquanto escrevia, rescrevia, apagava, cortava, aumentava o primeiro parágrafo da história. Depois, delineou o perfil psicológico dos personagens, como gostava de dizer em entrevistas - "os personagens têm vida própria" -, os trocou de ordem para ficarem mais equilibrados e entrou em um site sobre livros na internet.
Após meia hora lendo sobre livros alheios, voltou à página com alguns parágrafos. Passou os olhos rapidamente pela tela, apertou control e T e apagou tudo que estava escrito. "O que Júlio ia pensar de uma besteira dessas?"

26.10.06

da série "salvo prova em contário"

"Habituei-me também, nesses últimos anos, a ver, ao lado dos animais, crianças, velhos, mulheres, todos empenhados em revirar o lixo à procura de algo para comer, vender ou vestir. O espetáculo da miséria, antigamente limitado às favelas, e depois também ao Centro, espalhou-se por toda a cidade, até mesmo pelos bairros residenciais e privilegiados — Miraflores, Barranco, San Isidro. Quem mora em Lima tem de se acostumar com a miséria e com a sujeira, ou então enlouquecer e se suicidar."
Mario Vargas Llosa, sobre Lima, mas aplicável, com certeza, ao Rio de Janeiro.

20.10.06

Este texto não existe

Neste momento, estou escrevendo um texto só de citações. Cada palavra que digito já saiu, um dia, da pena, das teclas, da boca de outro autor. Estas linhas, que você, leitor, agora lê - no mesmo momento em que elas aparecem na tela que vejo -, eu apenas me apropriei delas, e neste instante você as rouba de mim.

A escritora

Você não me dá atenção, ela dizia. Você gosta mais dele do que de mim - o livro em frente aos olhos dele.
Então, ela começou a escrever na pele. Letras, palavras, frases - cada vez mais intricadas, cada vez mais sedutoras. Escrevendo em todas as partes do corpo, ela conseguia, dia a dia, satisfazer seus desejos.
(Obviamente, inspirado em Budapeste, do Chico Buarque.)

11.10.06

Vargas Llosa, o barroco

Baudrillard disse que Foucault usava o poder para criticar o poder. No trecho abaixo, de um livro que vai sair daqui a pouco, Vargas Llosa usa a prolixidade para criticar a prolixidade (de um autor chamado José Lezama Lima):

"Há muitas páginas de Paradiso nas quais o emaranhamento, o oceânico acúmulo de adjetivos e de advérbios, a sucessão de frases parasitas, que por sua vez se subdividem em outras frases parasitas, o abuso de símiles, de parêntesis, a sobrecarga, o adorno e o avanço ziguezagueante, as idas e vindas da linguagem acabam por ficar quase insuportáveis e desencorajam o leitor." (tradução minha)

Vargas Llosa é anacrônico não apenas em algumas opiniões políticas. Sua prosa, como bem viu Alberto Manguel, é semibarroca, está sempre a ponto de cair em rococós retóricos. Mas, apesar disso, seus livros e textos são fascinantes. Ou, para citá-lo novamente:

"Mas, apesar disso, quando se termina o livro, esses excessos verbais caem soterrados pela excitação, pelo deslumbramento (causado pela leitura)..."

5.8.06

VOCÊ CONHECE SAMUEL RAWET

(Textinho escrito por mim há uns dois anos)

Quando Alfredo Bosi escreveu sua História concisa da literatura brasileira, na década de 60, a literatura brasileira contemporânea era representada por autores como Guimarães Rosa e Clarice Lispector. Alguns já haviam publicado livros dez anos antes. Clarice, por exemplo, estreou na literatura aos dezessete anos com Perto do coração selvagem (1943). Outros estavam ingressando na literatura, como Rubem Fonseca, que publicara Os prisioneiros em 1963 e ainda não é citado pela obra de Bosi.
No livro de Bosi, encontramos um estranho nome, que chama atenção apesar de pouco citado: Samuel Rawet. Engenheiro, Rawet nasceu na Polônia, em 1929. Morreu em 1984, na cidade-satélite de Sobradinho, perto de Brasília. Na década de 60, era considerado um dos autores que renovavam a linguagem literária brasileira. Escreveu pequena e aclamada obra, mas hoje é praticamente desconhecido. Imigrante judeu, a maior parte de seus personagens é composta de pessoas deslocadas de seu ambiente, estranhas aos costumes, vindas de outros países ou regiões para as metrópoles brasileiras.
No momento em que a editora Civilização Brasileira reúne sua ficção com o título Contos e novelas reunidos, podemos no perguntar: por que, entre os escritores que traziam um sopro de inovação à literatura brasileira após a eclosão do modernismo, Rawet é dos menos lembrados?
Podemos encontrar um indício para solucionarmos a questão na cobertura que a imprensa brasileira deu a este relançamento. Apesar de ter obtido bastante espaço, as críticas sobre o livro se ativeram em resumir sua trágica vida, sempre à beira da loucura, em delinear as características gerais de seus personagens e em estabelecer seus parentescos literários – citando, na maior parte das vezes, Clarice Lispector.
O que, entretanto, faltou às análises é compreender aquilo que diferencia Clarice e Rawet. A questão da literatura de Clarice Lispector – que muitas de suas seguidoras não souberam apreender, apenas descrevendo o “universo feminino” – é a experimentação da linguagem. O universo feminino é um pretexto para a autora explorar a palavra. Os textos de Clarice sempre são construídos ao redor de uma idéia, de um certo desmantelamento da linguagem aos poucos realizado.
A experimentação literária de Rawet é de outra natureza, embora também tenha como um dos principais recursos o monólogo interior. Só que, em vez de utilizar o monólogo para narrar uma viagem pessoal pelo cotidiano, uma odisséia da palavra pela realidade, Rawet usa esse recurso para realizar aquilo que Mikhail Bakhtin chamava de dialogismo e polifonia. Em um estudo escrito em 1925, Bakhtin defende que os romances de Dostoievski são construídos de forma que o discurso transitasse de um sujeito para o outro. É como se a fala do próprio personagem fosse independente do autor. Para isto, o escritor deveria ter consciência da linguagem dos personagens, não só de suas características externas.
Nos contos e novelas de Rawet, há uma radicalização deste processo. O eu narrativo do monólogo interior é transferido de um personagem para o outro, como em um sonho ou numa vertigem, sem uma explicitação do efeito. As transições são marcadas, quando muito, por uma frase ou imagem recorrente que serve como ponto de referência para o leitor.
Como num sonho, em que a psique associa signos que aparentemente não apresentam relação alguma, o eu lírico de Rawet é mutante. Na verdade, é como se só houvesse um quadro, narrado no presente, quase parado. Este quadro, no entanto, traz à memória dos personagens a gama de seus pensamentos e experiências passados. Por isso, o tempo gramatical predominante não é nem o presente narrativo nem o pretérito perfeito, mas o pretérito imperfeito. Isto significa que não há, propriamente, narrativa. O presente é superfície. Abaixo está um tempo indeterminado (o imperfeito). Mais abaixo não há nada. As lembranças que poderiam determinar uma certa hierarquia, uma lógica que não a do sonho, inexistem no escuro do esquecimento. (No cinema, talvez haja um paralelo em O espelho, de Tarkovski.)
A ficção de Samuel Rawet foi negligenciada porque é difícil e radical. O que não é uma qualidade em si, mas sim um desafio a mais na descoberta desse autor ímpar.

6.7.06

Salve o nosso líder, Jorge Mautner!

Bem, já que eu não consigo escrever, vou publicar um trechinho do livro "O filho do Holocausto", que a Agir vai lançar este mês:
"Mas parei de beber subitamente, motivado por uma quase tragédia fatal que ocorreu justamente por causa dos efeitos nefastos de tanta bebida alcoólica sem restrições!
E a tragédia quase fatal começou quando eu ouvia pelo rádio a transmissão de um jogo do Corinthians contra o São Paulo. Estava em companhia de um amigo e colega estudante do Colégio Dante Alighieri, eu torcia para o Corinthians e ele para o São Paulo Futebol Clube. Estávamos no pequeno apartamento do meu pai, que ficava a apenas alguns metros de distância da casa onde eu morava com minha mãe e o Henri, meu padrasto. Claro que, antes mesmo do início do jogo, começamos a beber fartamente. Lá pelo final do primeiro tempo estávamos já embriagados. Sucede que o São Paulo venceu. E eu avisei em tom ameaçador para o meu amigo Frederico:
— Você pode ficar contente porque o seu time ganhou. Mas não venha festejar fazendo gozações e debochando do Corinthians!
Claro que o meu amigo Frederico, embriagado como eu, não resistiu e começou a debochar do meu time perdedor. Dei-lhe um segundo aviso, já com a voz mais irada e ameaçadora, porém, como era de se esperar, isso de nada adiantou, e apenas fez com que Frederico debochasse cada vez mais do meu Corinthians derrotado. A partir de certo momento não resisti e meu ódio tornou-se avassalador. Agarrei uma espécie de punhal, de lâmina afiadíssima e pontuda, que servia de abridor de cartas para as correspondências do meu pai, e ameacei meu amigo Frederico, dizendo:
— Cale esta boca agora senão eu te furo de morte!
E, quanto mais eu ameaçava o meu amigo Frederico, mais ele aumentava o teor de intensidade do seu deboche. Num dado instante, perdi a cabeça, e, para mostrar que não estava brincando, enfiei a pontuda faca de lâmina afiada na região de seu abdômen. Frederico mal acreditava no que se passava. Lembro-me da expressão de seu olhar incrédulo olhando para mim. Naquele instante ele desmaiou. Graças a Deus meu pai chegou naquela hora e pudemos levá-lo, meu pai e eu, para o pronto-socorro do hospital que ficava bem ao lado do lugar onde se passaram esses lamentáveis acontecimentos. Mais tarde o médico nos disse que por pouco Frederico teria morrido, pois a ponta da pontiaguda faca por poucos milímetros não atingira fatalmente o seu fígado, o que teria sido fatal.
A minha amizade com Frederico acabou e eu, a partir daquele momento, parei para todo o sempre de ingerir bebida alcoólica, fosse qual fosse seu teor de álcool, sempre atemorizado por aquela terrível irrupção de um ser monstruoso e assassino por causa da bebida.
Para poupar minha mãe de sofrimentos indevidos, eu e meu pai nada contamos para ela sobre esses quase trágicos e deploráveis acontecimentos, resultados de torcedor fanático e alterado de futebol, que quase matou o seu amigo!"

12.5.06

A comerciante

— Essa não sou eu — ela disse, virando o rosto para o lado e dando um suspiro.
— Com certeza, amor.
Ela olhava para uma outra mulher, que sorria para ela, os dentes brancos — mais brancos que os dela —, os olhos negros — mais negros que os dela —, mas o seu nome estava lá, agarrado àquela mulher que não, não era ela.
— Eu não sou essa — ela disse, e inspirou forte, enquanto empurrava o travesseiro.
— Tudo bem, meu amor.
— Nada contra você, que é bonita, mais bonita do que eu, mas você é ela. Por que, então, você aprisiona o meu nome? — mas isso ninguém ouviu.
— Certamente, você não deve estar com algum problema. Seu nome foi vendido para mim por dois mil, quinhentos e quinze pés de coco, assim mesmo, por extenso, como está escrito aqui, neste documento.
— Mas não consigo ler o que está escrito. E eu não assinei esse papel, que não é um papel, mas um pedaço de madeira.
— Uma vez que aqui estão marcas, que eu consigo ler, isto é um papel, superfície para ser escrita, e não se fala mais nisso — retrucou, ríspida (finalmente, estava demorando para a cordialidade acabar — a cordialidade é sempre superficial), a mulher que se agarrava ao nome, que parecia bastante satisfeito de estar juntinho daquele corpo.
— Mas eu não assinei — repetia a mulher, que não era ouvida.
— Não assinou, mas respirou três vezes com a narina direita e três com a esquerda quando você aspirava aquele pozinho branco aqui em cima dessa tabuleta (ou tableta, diriam alguns tradutores). Se você tivesse recusado, teria respirado todas as vezes com a mesma narina, correria o risco de passar daqui pruma melhor, mas códigos são códigos.
— Puta que pariu — resumiu a mulher, e graças a deus não foi ouvida, porque o homem não gostava nada de palavrões quando conversavam com pessoas que eles não conheciam, mesmo que elas tivessem comprado o nome de sua mulher. — Quem sou eu?
Dessa vez o homem ouviu, e se sentiu obrigado a responder, de improviso e olhando para a câmera:
— Acho que, das duas, uma: ou ela está fazendo um apanhado de letras de canções e de frases de romances do Chico Buarque ou ela está em um processo epifânico de reconhecimento da falência dos conceitos iluministas de identidade, sujeito do conhecimento e verdade. Daqui a pouco, penso que ela vai discorrer sobre o conceito de alethéia na obra de Haráclito, a partir da exposição feita por Heidegger em seu livro sobre o filósofo grego.
Agora foi a mulher quem não ouviu. Sorte, porque ela não gostava de discussões epistemológicas, gostava apenas do conhecimento transmitido pela narrativa.
— Nunca vi um nome ser vendido, não sabia dessa possibilidade. Tenho certeza de que as leis internacionais não permitem que se vendam objetos que não são possíveis de entrega, como a alma. Só podemos vender o que pode ser entregue, como a virgindade. Como entregar-te-ei meu nome?
— Caraíba usa mesóclise? Não sei como faço negócio com alguém tão pedante assim. Mesmo assim vou responder sua pergunta. Olhe aqui: o seu nome já está comigo. Pronta entrega. Não precisa se preocupar com isso.
— Preciso de um espelho para saber, afinal, que sou eu agora. Depois, quem sabe, não me dou um nome novo?
— Antes não quer ver os dois mil, quinhentos e quinze pés de coco?
— Tudo bem. O que não tem remédio...
Quando viu os dois mil, quinhentos e quinze pés de coco, todos semelhantes a pés de moleques, daqueles que machucam o pé todo, feitos de uma massa combinada da fibra e da carne do coco, a mulher se perguntou qual seria a finalidade de tudo aquilo. Mas ninguém ouviu, nem ela mesma.
— Deixa, então, que eu me dê um nome...
— Bem, para você ter um nome, você precisa abrir um processo no cartório, explicando que você está sem nome porque vendeu o seu e, sabe como é, ninguém existe realmente na sociedade sem um nome.
— Você está falando igual a mim... vendi também minha identidade?
— Quanta inexperiência... Você leu também as letrinhas miúdas? Ah, esqueci, você não saber ler.
— Tudo bem. Só mais uma coisa. Como eu tenho agora dois mil, quinhentos e quinze pés de coco, posso depois trazer meu novo nome e minha identidade, que ainda vou ter que construir, para você comprar por dois mil, quinhentos e quinze mãos de coco?
— Infelizmente não tenho mão de coco. Mas conheço alguém que pode fazer essa transação. Você quer o telefone dela?
— Dois, dois, três, quatro... — lia a mulher. Ouvindo isso, o homem, deitado ao lado dela, se perguntou:
— Mas ela não era analfabeta?

19.4.06

Salvo prova em contrário, o mundo é uma merda

- Ontem - ela me conta -, cheguei ao trabalho e tive a notícia de que aquela mãe tinha morrido. É a segunda este ano. A primeira foi assassinada. E penso que poderia tar ajudado mais. A segunda morreu de overdose, na frente de seus cinco filhos. Eu brigava tanto com ela. Dizia que ela era muito boa, muito paciente com o filho, que tinha que ser mais rígida. Ela dizia que o menino gostava de mim, que não parecia, mas gostava. Quem trabalha com isso sabe que, às vezes, a criança age mal pra chamar atenção, mas a gente acaba perdendo a cabeça às vezes. Ele também eu poderia ter ajudado mais. Ela mudou de escola, mas mesmo assim eu encontrava a mãe todo dia subindo o morro, sempre dizia que o menino tinha saudades. Agora ela morreu. Eu encontrava com ela todo dia subindo o morro. Tinha ido levar o menino ao CIEP. E agora, será que ele tem salvação?

28.1.06

Cultura e resistência


Ouvimos falar muito da resistência armada palestina, e um pouco da resistência de partidos políticos. Mas quantas vezes vimos, ouvimos ou lemos algum artista engajado palestino?
Para o bem e para o mal, lá vai ao menos um exemplo, o personagem Hanthala (uma criança que sempre aparece de costas para o leitor e de frente para uma imagem significativa), Amargura em português, de Naji Al-ali, assassinado há quase vinte anos. Ele dizia que esperava que seu personagem sobrevivesse à sua morte.

Tão importante quanto o protesto é a forma de protestar. Há, entre os palestinos, a mesma discussão que existe(iu) entre nós: qual é o ideal do artista consciente da realidade política. Lembremos dos diversos movimentos brasileiros (CPC, Cinema Novo, Tropicalismo, etc.).

O que é civilização e barbárie?

O que é civilização?

Resposta: civilização é o engarrafamento de um conto do Cortazar, em que, numa estrada que vai a Paris, milhares de pessoas ficam presas e, aos poucos, estabelecem relações de amizade, comércio, antagonismo, amor... Quando o engarrafamento começa a acabar, o rearranjo da ordem dos carros faz com que as relações dessa micro-sociedade também de rearranjem, até que os carros aceleram, acabando com os amores, as amizades, os antagonismos, o comércio.

O que é barbárie?

Barbárie ocorreu ontem, depois das sete da noite, no Rio de Janeiro. Até meia noite, o trânsito da cidade esteve caótico — mais do que de costume.
O homem de hoje é um solitário. Mas não um solitário como aquele sonhado por um Nietzsche, que seria o homem que não se entregaria às convenções da sociedade.
O homem de hoje é o solitário que vive na ilusão de ser social. Mas em uma situação em que seria possível estabelecer uma micro-sociedade, cria-se um ambiente de luta, de animosidade. Não, não é a expansão de cada corpo, de cada motorista. O atrito entre cada carro, o desrespeito a cada lei de trânsito, é como um acúmulo de matéria maligna nos vasos sanguíneos: aos poucos, o destino desse homem é o infarto, e da sociedade, a decomposição final.
Pessimista? Sim. Mas é porque eu sonhei com outro homem, com o homem que teria quase como uma segunda natureza o estabelecimento de relações sociais complexas.
Nada mais simples — e pobre, e triste — do que a animosidade geral.

10.11.05

Publicar um livro

Da Historia universal de la destucción de los libros, de Fernando Baéz:

"Un libro de consideraba publicado si había sido leído en público por un criado, llamado lector, o por el autor mismo. Una vez terminada la lectura pública, los oyentes podían hacer preguntas."

Quantas questões sobre o que é publicar, o que é leitor - ativo/passivo -, o que é autor ou público esão no ritual grego de leitura?

17.10.05

Epifânio tem uma rotina

Epifânio tem uma rotina. Acorda todo dia às 5 da manhã. Calça seus chinelos, e olha pela janela. A árvore à frente, com as folhas verdes e viçosas ou com os galhos secos e desfolhados; o vento fresco ou o bafo quente; o sol à toda ou a noite ainda entrevista.
Ele procura sinais. Veste-se de forma a estar preparado para o que der e vier. Toma o café da manhã na padaria, olhando de soslaio para todos que passam. Volta para casa e toma um banho gelado – algo na água passa energia para o corpo, revigora para a vigília.
Espera um telefonema. Espera algo na tevê ligada. Sai para o trabalho.
Epifânio lê o jornal no metrô. O que há no jornal? O que há no metrô? Existe, Epifânio, mais coisa entre uma estação e outra do que julgam nossa vã quiromancia.
Ele tem um método de leitura. Não reconhece palavras, mas signos maiores, símbolos, avisos nas letras do noticiário. Em algum lugar está a mensagem escrita só para ele, em uma língua que só ele conhece.
O remexer do vagão conversa com ele, atento a cada variação do barulho monótono dos trilhos. Aquilo não o cansa. Não dorme na viagem. Cada som faz parte de uma sinfonia universal, e ele está pronto para notar a mínima desarmonia.
Atende cada um dos reclamantes, requisitantes, requerentes e representantes como se eles pudessem ser algo mais do que reclamantes, requisitantes, requerentes e representantes. Hoje nenhum deles significou coisa alguma. Nem amanhã, nem depois e depois. Rostos e mais rostos sem sentido.
Volta para casa hoje, como voltará amanhã, procurando algo que implodisse seu cansaço. Liga a televisão. Algum dia da tela sairia uma teia que o ligaria a todos os outros espectadores do mundo. Não poderia ser tão insignificante o fato de milhares de pessoas olharem para o mesmo ponto, ao mesmo tempo.
Mas ele se cansa e vai dormir, com a esperança de que, no dia seguinte, acordaria transformado em alguma coisa diferente de si.
No dia seguinte, acorda o mesmo. Com uma ruga a mais, um fio de cabelo a menos, mas nada brusco acontecera. Por que, em sua vida, tudo era gradual?
Até que um dia Epifânio acordou – ainda um homem normal – e teve a certeza de ser único. Ele sabia – apenas ele – o que aconteceria naquele dia. Mas ele nada podia fazer. Continuou ali, deitado na cama, enquanto as horas passavam...

10.9.05

O colecionador (2)


Massimo Bontempelli (1878-1960)


O Barão Raimundo della Valle, dos Condes d’Aura, aos quatorze anos cursava a primeira série ginasial, e colecionava selos, à semelhança dos seus condicípulos e em concorrência com eles.

Superou-os bem depressa, porque a viúva sua mãe e o tio, ambos riquíssimos, reconhecendo que a paixão do rapaz era inocente e instrutiva, porfiavam em lhe comprar os espécimes mais caros e mais raros.

Assim, decorridos três anos, achou-se Raimundo possuidor de uma das mais completas coleções filatélicas do mundo, e era freqüentemente citado nas revistas dessa matéria. E, como ainda se achava no primeiro ano ginasial, a mãe e o tio pensaram em tirá-lo da escola. Filho único e sobrinho único, para a sua tenaz e nobre pessoa deviam convergir grandes riquezas; inútil esterilizá-lo com os estudos próprios dos burgueses e dos humildes.

Aos dezessete anos, portanto, deixou a escola. E, estando quase completa a coleção de selos, começou a apanhar borboletas. A empresa era menos fácil e mais delicada; mas, ainda aqui, teve Raimundo o eficaz auxílio dos seus parentes, a quem essa ocupação parecia agradável, honesta, e não menos instrutiva do que a outra. Com efeito, Raimundo já se havia aprofundado na geografia inédita e rara, sabia os nomes de uma porção de países remotos e mal conhecidos. E, ao passo que a nova coleção ia adornando os seus quartos de belas estantes e de quadros variegados, enchia-se-lhe o cérebro de nomes e conhecimentos entomológicos. Dentro em breve, também a coleção de borboletas era das mais completas e metódicas do gênero; e Raimundo iniciou a dos ex-libris. Esta o levou a uma quarta: encardenações artísticas de todos os séculos e todos os países.
Entretanto não descurava outras menores. Ocupava-se ele mesmo das mais importantes, e os seus secretários eram incumbidos das mais comuns: caixas de fósforos, leques, floreiras, quebra-luzes, máscaras.
Entregue a estes afazeres chegara Raimundo, Barão della Valle, dos Condes d’Aura, aos vinte e três anos de sua idade, quando perdeu a mãe; dois anos depois morreu-lhe também o tio, e ele teve o pesar de não lhe poder fechar os olhos, visto que se achava então na Holanda à procura de lâmpadas e candeeiros. Regressou à Itália para receber a herança, e em pouco tempo ordenou os seus negócios. Viu-se sozinho no mundo com muita saúde, muita liberdade e muitos milhões.

Agora o seu espírito estava irrevogavelmente encaminhado para aquela vocação invencível, ajudado da riqueza e da vontade pertinaz. Quantas coleções ideava, tantas empreendia, com o auxílio de especialistas: já não se ocupava com as coleções de per si, mas unicamente com o conjunto delas, que vinha assumindo a importância de uma coleção por excelência: a Coleção das Coleções. Queria que esta fosse também tão completa quanto possível.
Para isto Raimundo comprara e aparelhara um grande palácio. Ele dirigia e mantinha em ordem o todo; à frente de cada seção achava-se um técnico. Um dos aposentos era todo reluzente de vitrinas e multicor de asas de borboletas; outro, severamente estanteado, continha os volumes dos selos, e entre uma estante e outra, nas paredes, viam-se os mapas geofilatélicos que deviam servir de guia e de índice; um piano estava povoado de vasos para flores, as paredes resplandeciam de leques. Um celeiro fora transformado numa espécie de imensa colméia, cujos inúmeros cubículos encerravam as caixas de fósforos do mundo inteiro. E assim por diante. Atrás do palácio havia um vastíssimo jardim, plantado, em canteiros regulares convenientemente divididos e subdivididos, de roseiras de todas as castas; pois não era um jardim, mas uma coleção de rosas. No fundo do jardim, as cavalariças tinham-se transmudado em arquivo dos fichários. Raimundo vigiava cada coisa; os especialistas cuidavam em tornar sempre mais completa cada coleção; ele estudava novas coleções, mais e mais raras e difíceis.
A isto os seus amigos chamavam mania, mas não era. A mania é exclusiva, impede qualquer outro pensamento e qualquer alegria, e amarga a existência. Raimumdo, ao contrário, gozava, sábia e pacatamente, todos os prazeres da vida, gostava das companhias alegres, de amigos e de amigas, diurnas e noturnas. O poeta, o homem público, o corredor, nem sempre e necessariamente são maníacos; aquela é a ocupação principal, entre as outras. Assim Raimundo, que agora contava trinta anos.
A essa altura a sua arte, não sendo embora mania, produziu novo rumo em sua vida, até a morte.

Raimundo esperava espiritualizar cada vez mais o tipo das suas coleções: assim como passara do vulgar selo ao ex-libris ou à borboleta, e da borboleta morta à flor viva, assim buscava elevar-se mais e mais do plano material ao espiritual. Experimentava, claramente experimentava a necessidade de algo absolutamente novo e raro neste sentido, ainda não o achara.
A descoberta foi fruto do acaso, como sucede com todas as coisas grandes deste mundo.
Um dia ocorreu-lhe abrir um volume da coleção de encadernações, a fim de examinar o estado da costura interna. Até então nunca lhe acontecera abrir esse livro. Era uma edição do século XVI, de Comino, com encadernação autêntica de Viviano di Varese, em couro preto, com gravações a fogo; continha a vida de um capitão do século antecedente.
Os olhos de Raimundo caíram, no princípio de uma página, sobre este período: “...tíssimo; de fato, ele teve quatro filhos, um natural e três legítimos, posto que se dissesse que um dos três era adulterino, nascido de uma criada. Era, portanto...” Mas aqui o Barão Raimundo parou.

Uma idéia súbita e grande despontara-lhe na mente. O velho autor, naquele período, estava catalogando os filhos do capitão: natural, legítimos, adulterino... Ora, onde há catálogo, aí pode haver coleção.
A idéia era singular e imensa.
Durante duas noites Raimundo não conseguiu dormir; a visão nova assediava-o com a insistência das empresas que querem ser levadas a cabo a todo custo.
Passado o primeiro fervor turvo e inquieto da criação, entregou-se calmamente ao estudo do plano da coleção novíssima: a coleção dos filhos. Não falou nisto a ninguém; estudou a sério e penetrantemente. Compulsou tratados jurídicos e códigos, na parte referente a família, herança, paternidade, descendência. Inteirou-se bem de todas as possíveis variedades jurídicas e naturais na condição dos filhos. Não tardou a perceber que era necessária muita cautela; apressando-se na procura de um determinado tipo de filho, corria o risco de fechar o caminho às outras espécies. Por isso não pôs mãos à obra senão depois de haver estabelecido bem o seu plano e preparado um breve catálogo, que esgotasse as variedades possíveis. A princípio, afigurou-se-lhe que à inconsciente coleção do antigo chefe militar não faltavam mais que dois tipos. A coleção completa devia ser, pensava, de cinco. Meteu ombros à empresa.
Não lhe foi difícil encontrar uma amiguinha benévola: a filha do jardineiro que lhe cuidava da coleção das rosas. Após alguns meses mandou-a para um sítio seu, com uma velha criada incumbida de tratá-la carinhosamente. Nesse ínterim ele noivou: achar mulher foi-lhe ainda mais fácil. Estava impaciente, mas adiou as núpcias até o nascimento do filho — número 1: natural — da jardineira. Era um robusto pimpolho; o começo feliz da nova coleção.
O caso ficou encoberto e não estorvou em nada o matrimônio. Menos de um ano depois nasceu entre grandes festas um barãozinho della Valle, dos Condes d’Aura; o pai venturoso furtou-se aos parabéns para correr a lançar no catálogo secreto: número 2: legítimo.
Observava comovido as folhinhas ainda em branco, e pensava no futuro. Ninguém no mundo estava a par de seus planos e do seu propósito, e no seu coração de artista era tanto maior a alegria. Agora, precisava do filho adulterino. Avizinhava-se a primavera. Em breve cessaram as chuvas; o barãozinho tinha um mês, e a baronesa pouco antes se restabelecera de suas fadigas. Raimundo beijou na testa a mulher e o rebento, e foi passar alguns dias nas suas propriedades. A jardineira acolheu com submissa alegria. O colecionador demorou-se uma semana entre os campos e depois voltou à cidade a esperar notícias, que logo vieram, e foram boas.

O número dois, na cidade, estava desmamado desde algumas semanas, porque já contava mais de um ano, e no campo, ao lado do número um, que corria robustamente pelos prados, nascia o número 3: adulterino. E Raimundo encheu a terceira folha do catálogo íntimo.
Só faltavam à coleção duas espécies: pelo menos assim pensava ele, por enquanto.
Mas conseguir aquelas duas espécies era empresa difícil, delicada, ímproba. Mais de uma vez duvidou Raimundo de si mesmo, da própria idéia, do futuro da coleção suprema. Entretanto tinha havido aborrecimentos na família: surgiram rumores malignos a propósito da bela jardineira relegada ao campo, cartas anônimas, cenas desagradáveis com a esposa. Porém mais do que outra coisa qualquer, em meio às dissensões externas e manifestas da vida familiar, atormentava-o a contínua dissensão íntima: a quarta variedade para acrescentar à coleção. E já não era dissensão da sua íntima consciência: era o trabalho de encontrar os meios para atingir o novo fim. Não tinha, infelizmente, irmãs. Mas nisso o ajudou, em parte, o destino. Sua cunhada, a mais velha das irmãs da mulher, era casada com um homem maduro e áspero, e fazia falarem bastante de si. Raimundo aproximou-se dela, cercou-a, levou-a a ler Talvez sim, talvez não, cegou-a, perseguiu-a, seduziu-a. Teve o filho número 4: incestuoso. Uma cunhada é um pouco menos do que uma irmã; mas a vida é sempre um pouco menos que a arte, e cumpre contentarmo-nos com isto. Quatro.
Agora faltava um somente: Raimundo ainda acreditava que não faltasse mais do que um.
Foram-se-lhe os escrúpulos. Venceu as dificuldades com a astúcia, com a perseverança e com o dinheiro. A paixão tornara-se mais forte que qualquer sentimento de humanidade: agora ele não era senão o Colecionador. Abandonou por alguns meses a mulher, a pretexto de viajar pela Europa. Mas deixou-a na convivência de ótima sociedade, feminina e masculina, e de alguns sagacíssimos espiões; recebeu informações freqüentes e precisas; um dia, no quarto mês da sua viagem, um telegrama triunfal o advertiu: ele foi informado de que em sua casa acontecera algo de irremediável. Enquanto a mulher, nos primeiros dias da espantosa notícia, começava a desesperar-se e entrava a meditar expedientes extremos. Raimundo regressou inesperadamente. No primeiro instante ela receou que ele, ciente da sua culpa, se apressasse em puni-la. Ele, porém, mostrou-se alheio de tudo, fingiu reaproximar-se dela. A mulher tranqüilizou-se, e ele igualmente ficou tranqüilo; e após número necessário de meses continuou tranqüilo, por saber com toda a certeza que o segundo filho da mulher não era seu. Certas coisas são difíceis de contar e se escrevem com vergonha; mas a verdade é que ele, naquele ditoso dia, não se envergonhou de escrever no seu livrinho secreto: — número 5: putativo. E triunfou, porque acreditava que a suprema, laboriosa coleção estivesse completa.
Não estava completa a coleção.
Raimundo achava-se intimamente feliz. Acompanhava, de perto e de longe, o crescimento dos cinco filhos. Sonhava o dia em que, com alguma razão ou pretexto, que era necessário encontrar, pudesse vê-los todos reunidos vivendo em torno dele. Mas, certo dia, um novo caso, inteiramente fortuito, uma nova leitura, revelou-lhe de súbito a lacuna da sua coleção nova para o mundo e suprema.
Aconteceu-lhe ler alguns versos do canto VI da Eneida, na tradução de Annibale Caro:

Não vês ali aquele audaz mancebo
que naquela hasta pura o braço apóia?
À luz há de ser dado antes de todos:
o primeiro dos filhos que, no Lácio,
terá de ti Lavínia...

Arrepiaram-se-lhe os cabelos. Nunca pensara nisto. Releu o passo:
o primeiro dos filhos que, no Lácio,
terá de ti Lavínia...
Havia, pois, uma sexta classe, um sexto tipo, uma espécie que ainda faltava à sua coleção: uma sexta variedade de filho. Mas para o ter...
Então toda a sua obra era inútil? Levara sete anos naquela empresa, dela fazendo o único objetivo da vida: tinha vencido todos os outros sentimentos, todos os escrúpulos, todo o senso de dignidade e de humanidade, para que a obra saísse completa e acabada. E não se achava completa.
Necessitava completá-la, a todo custo. Isso estava nas suas mãos, e era fácil: precisava de vencer ainda o último sentimento, o mais profundo e mais elementar: impunha-se um sacrifício supremo.
A idéia obsessora atormentava-o e absorvia-o cada vez mais. Decorreram alguns meses. A fecunda baronesa preparou-se para dar à casa um novo rebento. E Raimundo cada vez mais se convencia da necessidade absoluta de fazer o último sacrifício à paixão, à vocação, ao gênio. Os meses iam passando: aproximava-se o fim. Raimundo já estava seguro de si, e mentalmente predispusera tudo. Eram os últimos dias. Certa manhã, a baronesa sentiu as primeiras dores: chamou-se a parteira.
Raimundo beijou a esposa na testa e foi fechar-se no quarto vizinho. Através da parede chegavam-lhe aos ouvidos todos os pequenos rumores: os passos das mulheres que aprestavam as coisas necessárias. Ele também aprontara o que era preciso. Estava sentado a uma mesinha, com o catálogo secreto aberto diante dos olhos, na sexta folha, ainda em branco. Aguardava o instante, para ficar certo de que o nascimento ia ocorrer de modo normal. E por isso cuidara de não fazer barulho, a fim de não se arriscar a perturbá-lo.Pronto: é agora; um instante depois seria tarde demais. Ouviu dali o começo de um grito mais forte, o grito que antecede a libertação. Escreveu rapidamente na folha — número 6: póstumo — e vibrou uma punhalada no coração.

16.8.05

Por que todos escrevem sobre sexo?

Um primo meu disse: porque esse é um assunto que a humanidade ainda não resolveu.
Acredito que ele esteja certo, mas não é só isso. Escrever sobre sexo é vaidade, é criar para si um imagem agradável: a de quem conhece sexo. Por um operação "lógica", atribuem-se ao autor algumas características de seus personagens. Por isso, o que mais se lê é uma geração de sub-rubemfonsecas, sub-georgesbatailles. Surgiu um novo gênero: o kitsch erótico. Kitsch, pelo que me lembro da minha leitura do Umberto Eco, é uma obra que tenta utilizar os estilemas da arte, geralmente de um período imediatamente anterior, mas não consegue chegar a ser arte. Dezenas de escritores criam personagens que apreciam vinhos, intelectuais anti-intelectuais, irresistíveis conquistadores; descrevem as cenas de sexo com linguagem direta, objetiva; alguns chegam ao ponto de namorar seu personagem a uma prostituta, sem que ele tenha ciúme. Não duvido que os autores tenham vivido tais aventuras. Mas tenho certeza de que eles leram algo similar em romances e contos.
Existe uma confusão, criada talvez por alguns autores e literaturas, entre o autor real e a imagem que ele cria de si com os conhecimentos demonstrados na obra. Enquanto essa confusão restringiu-se aos leitores, não havia problema. No entanto, hoje os autores confundem-se com a voz que usa em seus livros. (O blogue não tem de ser o lugar onde autor real e narrador encontram-se, mas muitos blogueiros acham que tem de ser). Isso necessariamente leva a uma literatura enfadonha, repetitiva, autocomplacente; isto é, uma literatura em que só existe uma voz, que o tempo todo fala de si mesma; uma literatura sem nuances, sem contradições.
Todos continuam escrevendo sobre sexo – e que continuem, já que este é um problema a ser resolvido. Mas escrever sobre sexo não pode ser uma finalidade em si mesma. Literatura é linguagem. Por isso, defendo uma volta à forma, a uma arte pela arte. Para que haja bons livros que falem de sexo.

8.8.05

Ficção, não-ficção e nacionalidades

Estamos no ano 2005. Somos todos, de certa forma, habitantes de fronteiras, desenraizados. Somos brasileiros que pensamos como americanos, ou americanos invadidos por traços culturais brasileiros, mesmo sem saber. Os grandes escritores e pensadores são ainda mais desenraizados do que nós. Não é à toa que Ahdaf Soueif, V. S. Naipaul, Edward Said e tantos outros desfilam em artigos de grandes jornais (Guardian, Independent, New York Times etc.), em prêmios literários e em listas de mais vendidos. Afinal, eles devem ser mais aptos para entender esse mundo em que, de terrenos limitados por fronteiras, passamos a encontrar países formados por fronteiras que se entrecruzam.
V. S. Naipaul, de 72 anos, nem indiano, nem britânico, em uma entrevista ao New York Times (http://www.nytimes.com/2005/08/07/books/07DONADIO.html?pagewanted=1&th&emc=th), afirmou que a ficção não está mais apta para dar conta desta realidade.
''What I felt was, if you spend your life just writing fiction, you are going to falsify your material. And the fictional form was going to force you to do things with the material, to dramatize it in a certain way. I thought nonfiction gave one a chance to explore the world, the other world, the world that one didn't know fully.''
''It came to me that the great novelists wrote about highly organized societies. I had no such society; I couldn't share the assumptions of the writers; I didn't see my world reflected in theirs. My colonial world was more mixed and secondhand, and more restricted. The time came when I began to ponder the mystery - Conradian word - of my own background.''
Como escreveu Rachel Donadio, que entrevistou Naipaul, o escritor deveria abandonar seu lar e viajar por este ativo e ocupado mundo. O mundo não poderia estar contido em um romance.
O que me causa estranhamento é que logo um escritor de fronteiras (entre nacionalidades, entre profissões, entre ficção e não-ficção) não entenda que é justamente a literatura de fronteira entre gêneros (poesia e prosa, ficção e reportagem, relato autobiográfico e alegoria) que pode dar conta deste mundo maluco. Nada é mais limitado, mais conservador do status quo do que o realismo do romance estadunidense, à Philip Roth, que não faz mais nada do que apresentar a visão americana como compreensão universal do mundo. Sem pensar a linguagem do mundo é impossível pensar a realidade do mundo.

24.6.05

Ontem eu vi o Brasil

Centro do Rio de Janeiro, em dia de semana, início da noite. Pessoas saem do trabalho, outras se dirigem a museus, cinamas, teatros. Os bares estão tomados por grupos, colegas de trabalho que - fora do teatro de produtividade, trocam de máscara - conversam coisas amenas: piadas, maledicências, clichês sobre notícias de jornal.
Um homem espera sua vez de falar pelo telefône público. Aguarda que outro, de terno, termine de anotar algo em um caderno pequeno. Onde estão essas pessoas do centro do Rio?
De uma passagem telespacial, de um portal trans-histórico, um negro surge na ruo onde não passam carros. Cabelos brancos, ombros curvados para trás, a mão esquerda segura o braço direito pouco abaixo do cotovelo (meu deus!, ciaste uma nova espécie no futuro do país, um super-homem em posição tão improvável, impossível; um homem do futuro).
"Marechal Deodoro, Floriano Peixoto, Prudente de Moraes, Campos Salles, Rodrigues Alves, Affonso Penna, Nilo Peçanha, Hermes da Fonseca", ladainhava, "Marechal Deodoro, Floriano Peixoto, Prudente de Moraes, Campos Salles, Rodrigues Alves, Affonso Penna, Nilo Peçanha, Hermes da Fonseca", ladainhava, ladrava, "Marechal Deodoro, Floriano Peixoto, Prudente de Moraes, Campos Salles, Rodrigues Alves, Affonso Penna, Nilo Peçanha, Herrmes da Fonseca, todos eles iguais".
Folk, Pueblo, People, Povo: um pouco louco, um pouco bêbado, olha para um monte de nomes que nada lhe dizem, a não ser sobre sua própria imcapacidade (inominável: o que não tem nome, o que perde o nomo, o que, por não ter nome, não age).

(isso ficou clichê)

22.6.05

Morte e ressurreição do vampiro

Raros, poucos livros realmente mexem comigo. São poucos os que imediatamente me dão vontade de escrever – escrever como seus autores, escrever sobre seus autores. A obra de que gosto é aquela que diz mais do que está escrito, e é por isto que escrevemos sobre elas: para tentar dizer um pouco do mundo escondido. É mais importante, claro, pensar do que ler. De alguns autores, não se espera nada mais do que mais do mesmo. A leitura de uma crônica do Fernando Sabino é, para mim, sempre um descanso para o pensamento. Não mexe comigo. Dos contos do Dalton Trevisan também costumava esperar sempre a mesma ironia, a mesma concisão, o mesmo universo, o onírico dos pequenos deslizes e obsessões. Muito embora as minhas primeiras leituras de seus livros tenham me abalado, minha paixão por sua obra estava estagnada.
Em que um autor pode mudar aos 80 anos? Esqueçamos sua idade – pensemos em sua obra, a contínua e crescente eliminação de palavras característica de seus contos. Leiam, por favor, Rita, Ritinha, Ritona. O que pode ter mudado em um autor de tantos livros? Por que, de repente, do onírico se fez o realista? Por que, de repente, da crescente concisão surge um retorno à narrativa? Por que a visão apaixonada das pequenas patologias cotidianas dá lugar a uma visão de horror diante do que há de podre no mundo.
O reino do vampiro está podre: Nelsinho, o delicado, “da espécie em extinção o último”, dá adeus ao mundo. Os vampiros, notívagos românticos de uma Curitiba perdida – mas também de um Rio perdido, de um mundo submerso –, somem “na noite sem fundo do esquecimento”. Em seu lugar, surge o ladrão de classe média, viciado em “craque”, que, em mais uma passagem por uma clínica de desintoxicação, admite que pensa em vender suas roupas e seu corpo para conseguir droga. “Você não pode acreditar: já fui com moço. Um cara legal”. O notívago já foi um bom moço, um vampiro que “apenas mordisca e sopra a nuca das bem-queridas”. Hoje é o estuprador da menina de nove anos – “na verdade, oito e meio” – que coleciona calcinhas.
Neste livro de Dalton Trevisan, as sutilezas e as mensagens nas entrelinhas são substituídas por uma linguagem mais direta, escassa em metáforas. O narrador que transforma em arte as situações do cotidiano dá lugar a um narrador que reproduz um universo que lhe é alheio e hostil.
Uma vez que há uma recusa em adotar uma fórmula narrativa consagrada (e copiada), D. T. faz a forma significar. A transição da forma, ou melhor, a retração de um virtuosismo, a substituição do jogo de variações sobre o mesmo tema por uma nova forma que expressa outro sentido, estes são elementos de uma consciência do choque entre o desejado e o possível. De um lado, há a antiga realidade que se ama, cujos detalhes sempre foram o material de onde o autor tirava seus contos. Do outro, há o susto de enxergar um outro mundo que foi construído em cima do antigo – e o desejo de construir uma nova forma que dê conta desta nova realidade, construída sobre a forma antiga. Mesmo na ruptura, é possível encontrar a evolução de uma forma.
É estranho que este livro aproxime Dalton de outro octogenário, Rubem Fonseca. A violência – da linguagem e da narrativa – instaura uma dúvida no próprio significado de humano. Cada conto apresenta uma resposta ou uma negativa a esta questão. O conto O cobrador, do R. F., por exemplo, aponta o engajamento como resposta para a angústia de viver em um mundo sem sentido. A personagem feminina aparece como um catalizador ou canalizador da violência do protagonista. Em alguns de seus novos contos, Dalton dá outra resposta: não há sentido algum.

***

Apenas uma observação: os críticos, a meu ver, não entenderam Rita, Ritinha, Ritona. Digo que não entenderam porque acho que as obras não são tão abertas assim. Alguns o acusaram de recorrer a clichês, como o ladrão de classe média. Só esqueceram que esta obra é construída sobre uma linguagem consagrada (a da concisão), negando-a. Da mesma forma, a personagem, certamente um arquétipo, é construída sobre as ruínas de outra personagem, outro arquétipo: o vampiro um tanto romântico dos livros anteriores.
O livro de D.T. não é homogêneo, mas seus bons momentos bastam para torná-lo um ótimo livro.

***

Outra analogia interessante: Dalton Trevisan e os autores das últimas gerações. Luiz Rufatto, por exemplo, em Eles eram muitos cavalos, um mosaico de um dia na cidade de São Paulo, responde de forma ainda mais radical à questão da erosão dos sentidos cristalizados. Embora haja recorrência de lugares e temas e uma certa narrativa em flashback, os 70 instantâneos do livro são a negação da História. Só o que existe é um caleidoscópico painel, perspectivado, complexo, da cidade. A única relação entre as pessoas é a coincidência de tempo e espaço.
Já em Inferno provisório (vol. 1 Mamma, son tanto felice; vol. 2 O mundo inimigo), a proposta de fazer um painel transversal do operariado no Brasil corresponde a uma visão diferente da realidade. A História é formada da síntese entre um ambiente incontrolável (a decadência dos bairros e cidades, a influência da vizinhança, os vícios alheios e herdados) e o desejo de ser livre.

***

Se há uma função para a literatura – e para aquilo que podemos chamar de “pensamento literário” –, esta não é dar respostas para as perguntas. Pode ser representar uma tendência, um anseio. Pode ser abrir caminho para dúvidas, questionamentos. Pode ser complexificar os conceitos. Enfim, a função da literatura talvez seja transformar a angústia da nossa existência em uma experiência possível de ser vivida por diversas pessoas, cada qual ao seu modo (Eu gosto de citar o filme Persona, do Bergman. Tudo que é possível pensar sobre não ser idêntico a si mesmo, em coexistência de desejos contraditórios em uma mesma pessoa, da complexidade do sujeito, da esquizofrenia, tudo isso foi transformado em uma forma artística. Desde a estrutura narrativa, passando pela montagem e pelas atuações, todos os elementos possibilitam a experiência da duplicidade, do id e do ego, do desejo e da máscara.).A leitura destes livros é a experiência dessa angústia, explosões em nossa cabeça que puxam pensamentos, que fazem pulular idéias, que instigam desejos, que, contraditoriamente, dão sentido à vida.

15.6.05

Diga a palavra, e liberte-me

Em certa cidade, chegou um homem mudo, ou melhor, um homem que por mudo todos o tomavam. Os moradores tiveram dificuldade de reconhecer seu aspecto humano. Seus traços não eram aqueles a que estavam acostumados. Apesar do estranhamento, os cidadão abrigaram o forasteiro e o alimentaram. O estupor de ambos os lados durou até que um sábio do lugar reconheceu a que povo pertenciam as roupas do estrangeiro e disse a única palavra que sabia da língua desse povo: olá.
O homem, que há três meses, desde que chegara à cidade, não havia falado sequer uma palavra, passou a emitir sons ininterruptos. Apenas sons, já que ninguém conseguia decifrá-los. Os dias passaram e a continuava. Aos poucos, os habitantes da cidade foram decifrando os signos, aglutinando sons em palavras, distinguindo entonações. O que parecia homogêneo diferenciou-se; as histórias sonhadas, os absursos que aquela fala guardaria, foram revelados em palavras. Tudo o que havia de mágico naquele homem, que era uma espécie de tótem para aquele povo, foi desaparecendo. À medida que encontravam tradução para bola ou para fome, o forasteiro deixava de ser sobre-humano para se tornar apenas um estrangeiro. Ganhou um nome, adaptado de sua língua.
Quem mais se interessava pela língua do estrangeiro era o velho que primeiro travara contato verbal com o homem. Ao morrer, o velho deixou uma gramática e um dicionário da língua, ao mesmo tempo mítica e morta naquela cidade, onde apenas uma pessoa a falava. Além disso, o forasteiro entrou em uma imensa tristeza, como em um casulo que o envolvesse, um banzo de estrangeiro deportado, solitário apesar da boa acolhida. Um estudante, que consultava os livros do velho sábio, descobriu por quê. Uma palavra não havia sido transposta de uma línguia para a outra, flutuava sem referência. Um substantivo. Apaixonado pela busca à resposta do novo enigma, o estudante procurou o estrangeiro, já velho, que havia voltado a emudecer-se. De sua boca não saíram mais palavras até a véspera de sua morte. Em sua cama, antes de fechar os olhos, o homem disse ao estudante aquela palavra incomunicável.
Deduzindo de indícios relacionados à forma como a palavra foi dita, o estudante - agora professor - concluiu tratar-se de um substantivo abstrato. Colegas seus, que após o o ressurgimento do enigma voltaram a se interessar pela língua misteriosa, entraram em combate. Cada um defendia que a palavra pertencia a ma classe gramatical.
Foi quando um poeta, dentre os renomados o mais inquieto, fechou um poema com as frases

digo
aquilo que nunca foi dito

e depis escreveu a palavra icognoscível.
Críticos saudaram-no como gênio. Lingüistas detrataram-no como impostor. Filósofos discutiram-no como profeta. Apesar dos calorosos detratores, a palavra tornou-se corrente. Descrevia certo estado de espírito que nunca havia sido descrito,mas que todos sabiam o que era. Somente o poeta, com seu gênio criador, teve a habilidade de compreender o sentimento que unge todo aquele povo que, em algum lugar, fala aquela língua estrangeira.
Uma nova era surgia. Um novo etos para esta sociedade, que agora conhecia a fundo sua consciência. Esta era durou muito tempo, até que chegou à cidade um homem mudo. Ou que os cidadãos consideraram mudo. Presto, estudiosos reconheceram sua vestimenta e disseram-lhe: olá. Ao que ele respondeu. Contaram-lhe toda a história do forasteiro, seu compatriota, que da mesma forma misteriosa havia chegado, anos arás, como contaram os registros do passados, e a memória dos mais velhos, que haviam ouvido dos já mortos. Contaram-lhe o esoforço do velho em criar a gramática e o dicionário. E o esforço do estudante, depois professor, em tentar decifrar o enigma.

diga
aquilo que nunca foi dito

pediram-lhe.
Ao que ele respondeu.