10.9.05

O colecionador (2)


Massimo Bontempelli (1878-1960)


O Barão Raimundo della Valle, dos Condes d’Aura, aos quatorze anos cursava a primeira série ginasial, e colecionava selos, à semelhança dos seus condicípulos e em concorrência com eles.

Superou-os bem depressa, porque a viúva sua mãe e o tio, ambos riquíssimos, reconhecendo que a paixão do rapaz era inocente e instrutiva, porfiavam em lhe comprar os espécimes mais caros e mais raros.

Assim, decorridos três anos, achou-se Raimundo possuidor de uma das mais completas coleções filatélicas do mundo, e era freqüentemente citado nas revistas dessa matéria. E, como ainda se achava no primeiro ano ginasial, a mãe e o tio pensaram em tirá-lo da escola. Filho único e sobrinho único, para a sua tenaz e nobre pessoa deviam convergir grandes riquezas; inútil esterilizá-lo com os estudos próprios dos burgueses e dos humildes.

Aos dezessete anos, portanto, deixou a escola. E, estando quase completa a coleção de selos, começou a apanhar borboletas. A empresa era menos fácil e mais delicada; mas, ainda aqui, teve Raimundo o eficaz auxílio dos seus parentes, a quem essa ocupação parecia agradável, honesta, e não menos instrutiva do que a outra. Com efeito, Raimundo já se havia aprofundado na geografia inédita e rara, sabia os nomes de uma porção de países remotos e mal conhecidos. E, ao passo que a nova coleção ia adornando os seus quartos de belas estantes e de quadros variegados, enchia-se-lhe o cérebro de nomes e conhecimentos entomológicos. Dentro em breve, também a coleção de borboletas era das mais completas e metódicas do gênero; e Raimundo iniciou a dos ex-libris. Esta o levou a uma quarta: encardenações artísticas de todos os séculos e todos os países.
Entretanto não descurava outras menores. Ocupava-se ele mesmo das mais importantes, e os seus secretários eram incumbidos das mais comuns: caixas de fósforos, leques, floreiras, quebra-luzes, máscaras.
Entregue a estes afazeres chegara Raimundo, Barão della Valle, dos Condes d’Aura, aos vinte e três anos de sua idade, quando perdeu a mãe; dois anos depois morreu-lhe também o tio, e ele teve o pesar de não lhe poder fechar os olhos, visto que se achava então na Holanda à procura de lâmpadas e candeeiros. Regressou à Itália para receber a herança, e em pouco tempo ordenou os seus negócios. Viu-se sozinho no mundo com muita saúde, muita liberdade e muitos milhões.

Agora o seu espírito estava irrevogavelmente encaminhado para aquela vocação invencível, ajudado da riqueza e da vontade pertinaz. Quantas coleções ideava, tantas empreendia, com o auxílio de especialistas: já não se ocupava com as coleções de per si, mas unicamente com o conjunto delas, que vinha assumindo a importância de uma coleção por excelência: a Coleção das Coleções. Queria que esta fosse também tão completa quanto possível.
Para isto Raimundo comprara e aparelhara um grande palácio. Ele dirigia e mantinha em ordem o todo; à frente de cada seção achava-se um técnico. Um dos aposentos era todo reluzente de vitrinas e multicor de asas de borboletas; outro, severamente estanteado, continha os volumes dos selos, e entre uma estante e outra, nas paredes, viam-se os mapas geofilatélicos que deviam servir de guia e de índice; um piano estava povoado de vasos para flores, as paredes resplandeciam de leques. Um celeiro fora transformado numa espécie de imensa colméia, cujos inúmeros cubículos encerravam as caixas de fósforos do mundo inteiro. E assim por diante. Atrás do palácio havia um vastíssimo jardim, plantado, em canteiros regulares convenientemente divididos e subdivididos, de roseiras de todas as castas; pois não era um jardim, mas uma coleção de rosas. No fundo do jardim, as cavalariças tinham-se transmudado em arquivo dos fichários. Raimundo vigiava cada coisa; os especialistas cuidavam em tornar sempre mais completa cada coleção; ele estudava novas coleções, mais e mais raras e difíceis.
A isto os seus amigos chamavam mania, mas não era. A mania é exclusiva, impede qualquer outro pensamento e qualquer alegria, e amarga a existência. Raimumdo, ao contrário, gozava, sábia e pacatamente, todos os prazeres da vida, gostava das companhias alegres, de amigos e de amigas, diurnas e noturnas. O poeta, o homem público, o corredor, nem sempre e necessariamente são maníacos; aquela é a ocupação principal, entre as outras. Assim Raimundo, que agora contava trinta anos.
A essa altura a sua arte, não sendo embora mania, produziu novo rumo em sua vida, até a morte.

Raimundo esperava espiritualizar cada vez mais o tipo das suas coleções: assim como passara do vulgar selo ao ex-libris ou à borboleta, e da borboleta morta à flor viva, assim buscava elevar-se mais e mais do plano material ao espiritual. Experimentava, claramente experimentava a necessidade de algo absolutamente novo e raro neste sentido, ainda não o achara.
A descoberta foi fruto do acaso, como sucede com todas as coisas grandes deste mundo.
Um dia ocorreu-lhe abrir um volume da coleção de encadernações, a fim de examinar o estado da costura interna. Até então nunca lhe acontecera abrir esse livro. Era uma edição do século XVI, de Comino, com encadernação autêntica de Viviano di Varese, em couro preto, com gravações a fogo; continha a vida de um capitão do século antecedente.
Os olhos de Raimundo caíram, no princípio de uma página, sobre este período: “...tíssimo; de fato, ele teve quatro filhos, um natural e três legítimos, posto que se dissesse que um dos três era adulterino, nascido de uma criada. Era, portanto...” Mas aqui o Barão Raimundo parou.

Uma idéia súbita e grande despontara-lhe na mente. O velho autor, naquele período, estava catalogando os filhos do capitão: natural, legítimos, adulterino... Ora, onde há catálogo, aí pode haver coleção.
A idéia era singular e imensa.
Durante duas noites Raimundo não conseguiu dormir; a visão nova assediava-o com a insistência das empresas que querem ser levadas a cabo a todo custo.
Passado o primeiro fervor turvo e inquieto da criação, entregou-se calmamente ao estudo do plano da coleção novíssima: a coleção dos filhos. Não falou nisto a ninguém; estudou a sério e penetrantemente. Compulsou tratados jurídicos e códigos, na parte referente a família, herança, paternidade, descendência. Inteirou-se bem de todas as possíveis variedades jurídicas e naturais na condição dos filhos. Não tardou a perceber que era necessária muita cautela; apressando-se na procura de um determinado tipo de filho, corria o risco de fechar o caminho às outras espécies. Por isso não pôs mãos à obra senão depois de haver estabelecido bem o seu plano e preparado um breve catálogo, que esgotasse as variedades possíveis. A princípio, afigurou-se-lhe que à inconsciente coleção do antigo chefe militar não faltavam mais que dois tipos. A coleção completa devia ser, pensava, de cinco. Meteu ombros à empresa.
Não lhe foi difícil encontrar uma amiguinha benévola: a filha do jardineiro que lhe cuidava da coleção das rosas. Após alguns meses mandou-a para um sítio seu, com uma velha criada incumbida de tratá-la carinhosamente. Nesse ínterim ele noivou: achar mulher foi-lhe ainda mais fácil. Estava impaciente, mas adiou as núpcias até o nascimento do filho — número 1: natural — da jardineira. Era um robusto pimpolho; o começo feliz da nova coleção.
O caso ficou encoberto e não estorvou em nada o matrimônio. Menos de um ano depois nasceu entre grandes festas um barãozinho della Valle, dos Condes d’Aura; o pai venturoso furtou-se aos parabéns para correr a lançar no catálogo secreto: número 2: legítimo.
Observava comovido as folhinhas ainda em branco, e pensava no futuro. Ninguém no mundo estava a par de seus planos e do seu propósito, e no seu coração de artista era tanto maior a alegria. Agora, precisava do filho adulterino. Avizinhava-se a primavera. Em breve cessaram as chuvas; o barãozinho tinha um mês, e a baronesa pouco antes se restabelecera de suas fadigas. Raimundo beijou na testa a mulher e o rebento, e foi passar alguns dias nas suas propriedades. A jardineira acolheu com submissa alegria. O colecionador demorou-se uma semana entre os campos e depois voltou à cidade a esperar notícias, que logo vieram, e foram boas.

O número dois, na cidade, estava desmamado desde algumas semanas, porque já contava mais de um ano, e no campo, ao lado do número um, que corria robustamente pelos prados, nascia o número 3: adulterino. E Raimundo encheu a terceira folha do catálogo íntimo.
Só faltavam à coleção duas espécies: pelo menos assim pensava ele, por enquanto.
Mas conseguir aquelas duas espécies era empresa difícil, delicada, ímproba. Mais de uma vez duvidou Raimundo de si mesmo, da própria idéia, do futuro da coleção suprema. Entretanto tinha havido aborrecimentos na família: surgiram rumores malignos a propósito da bela jardineira relegada ao campo, cartas anônimas, cenas desagradáveis com a esposa. Porém mais do que outra coisa qualquer, em meio às dissensões externas e manifestas da vida familiar, atormentava-o a contínua dissensão íntima: a quarta variedade para acrescentar à coleção. E já não era dissensão da sua íntima consciência: era o trabalho de encontrar os meios para atingir o novo fim. Não tinha, infelizmente, irmãs. Mas nisso o ajudou, em parte, o destino. Sua cunhada, a mais velha das irmãs da mulher, era casada com um homem maduro e áspero, e fazia falarem bastante de si. Raimundo aproximou-se dela, cercou-a, levou-a a ler Talvez sim, talvez não, cegou-a, perseguiu-a, seduziu-a. Teve o filho número 4: incestuoso. Uma cunhada é um pouco menos do que uma irmã; mas a vida é sempre um pouco menos que a arte, e cumpre contentarmo-nos com isto. Quatro.
Agora faltava um somente: Raimundo ainda acreditava que não faltasse mais do que um.
Foram-se-lhe os escrúpulos. Venceu as dificuldades com a astúcia, com a perseverança e com o dinheiro. A paixão tornara-se mais forte que qualquer sentimento de humanidade: agora ele não era senão o Colecionador. Abandonou por alguns meses a mulher, a pretexto de viajar pela Europa. Mas deixou-a na convivência de ótima sociedade, feminina e masculina, e de alguns sagacíssimos espiões; recebeu informações freqüentes e precisas; um dia, no quarto mês da sua viagem, um telegrama triunfal o advertiu: ele foi informado de que em sua casa acontecera algo de irremediável. Enquanto a mulher, nos primeiros dias da espantosa notícia, começava a desesperar-se e entrava a meditar expedientes extremos. Raimundo regressou inesperadamente. No primeiro instante ela receou que ele, ciente da sua culpa, se apressasse em puni-la. Ele, porém, mostrou-se alheio de tudo, fingiu reaproximar-se dela. A mulher tranqüilizou-se, e ele igualmente ficou tranqüilo; e após número necessário de meses continuou tranqüilo, por saber com toda a certeza que o segundo filho da mulher não era seu. Certas coisas são difíceis de contar e se escrevem com vergonha; mas a verdade é que ele, naquele ditoso dia, não se envergonhou de escrever no seu livrinho secreto: — número 5: putativo. E triunfou, porque acreditava que a suprema, laboriosa coleção estivesse completa.
Não estava completa a coleção.
Raimundo achava-se intimamente feliz. Acompanhava, de perto e de longe, o crescimento dos cinco filhos. Sonhava o dia em que, com alguma razão ou pretexto, que era necessário encontrar, pudesse vê-los todos reunidos vivendo em torno dele. Mas, certo dia, um novo caso, inteiramente fortuito, uma nova leitura, revelou-lhe de súbito a lacuna da sua coleção nova para o mundo e suprema.
Aconteceu-lhe ler alguns versos do canto VI da Eneida, na tradução de Annibale Caro:

Não vês ali aquele audaz mancebo
que naquela hasta pura o braço apóia?
À luz há de ser dado antes de todos:
o primeiro dos filhos que, no Lácio,
terá de ti Lavínia...

Arrepiaram-se-lhe os cabelos. Nunca pensara nisto. Releu o passo:
o primeiro dos filhos que, no Lácio,
terá de ti Lavínia...
Havia, pois, uma sexta classe, um sexto tipo, uma espécie que ainda faltava à sua coleção: uma sexta variedade de filho. Mas para o ter...
Então toda a sua obra era inútil? Levara sete anos naquela empresa, dela fazendo o único objetivo da vida: tinha vencido todos os outros sentimentos, todos os escrúpulos, todo o senso de dignidade e de humanidade, para que a obra saísse completa e acabada. E não se achava completa.
Necessitava completá-la, a todo custo. Isso estava nas suas mãos, e era fácil: precisava de vencer ainda o último sentimento, o mais profundo e mais elementar: impunha-se um sacrifício supremo.
A idéia obsessora atormentava-o e absorvia-o cada vez mais. Decorreram alguns meses. A fecunda baronesa preparou-se para dar à casa um novo rebento. E Raimundo cada vez mais se convencia da necessidade absoluta de fazer o último sacrifício à paixão, à vocação, ao gênio. Os meses iam passando: aproximava-se o fim. Raimundo já estava seguro de si, e mentalmente predispusera tudo. Eram os últimos dias. Certa manhã, a baronesa sentiu as primeiras dores: chamou-se a parteira.
Raimundo beijou a esposa na testa e foi fechar-se no quarto vizinho. Através da parede chegavam-lhe aos ouvidos todos os pequenos rumores: os passos das mulheres que aprestavam as coisas necessárias. Ele também aprontara o que era preciso. Estava sentado a uma mesinha, com o catálogo secreto aberto diante dos olhos, na sexta folha, ainda em branco. Aguardava o instante, para ficar certo de que o nascimento ia ocorrer de modo normal. E por isso cuidara de não fazer barulho, a fim de não se arriscar a perturbá-lo.Pronto: é agora; um instante depois seria tarde demais. Ouviu dali o começo de um grito mais forte, o grito que antecede a libertação. Escreveu rapidamente na folha — número 6: póstumo — e vibrou uma punhalada no coração.