25.4.05

O colecionador

Discos. Fitas. Isqueiros. Selos. Brinquedos. Bandeiras.
Brancos: azuis, vermelhos, amarelos, verdes, lilases. Dourados. Prateados.
Incensos. Perfumes. Vazios.
Carros que não andam. Aviões que não voam.
Trancados em cômodos: corredor, sala, sala, corredor, escritório, cozinha, banheiro, sala, quarto.
E o velho anda entre os objetos, corre, desliza. Mesmo se fosse cego, voaria pelos ambientes como o sangue corre pelas veias, como o ar entre as folhas, como a eletricidade dentro do fio.
Eu sou a pessoa mais viva que existe, me disse o velho.
Perguntei o porquê.
Por que morro e nasço de novo, para mais uma vez morrer e renascer. Cada objeto que adquiro é uma vida nova para mim, curta.
Não cansas, perguntei.
Imagina: cada objeto é diferente. Tive milhões de vidas.
São tantas e não te parecem iguais?
Não te perseguem em sonho os objetos abandonados?
Tu não te angustias?
A todas essas questões, ele dá uma única solução: Os objetos estão mortos, eu lhes tiro a vida. Desisti de colecionar seres humanos.

12.4.05

There was a child went forth

Não sou um bom leitor. Não imagino o que possa ser aquilo que os estudiosos chamam "leitura sistemática", ou "organizada". Só leio o que me apetece - e o que ontem me entediou a ponto de deixar de lado, hoje pode me seduzir. Por isso, não consigo ter disciplina.
Além disso, sou desatento. O que guardei, por exemplo, do que já li sobre Walt Whitman? Nada, a não ser seu nome e do título Leaves of grass. Imaginava algo parecido com o Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa, o que em parte se confirmou. Possivelmente, Whitman influenciou Pessoa na construção do poeta que oscila entre o culto da Natureza e o ceticismo.
Logo, ao abrir uma antiga edição de The portable Walt Whitman (1945), eu era um neófito. Primeiro, procurei as datas dos poemas (entre 1850 e 1880). Então, escolhi em que me parecesse uma boa introdução ao universo do poeta. A seguir, a minha leitura - a de um iniciante, a de alguém que desconhece quase tudo a respeito do poeta, portanto, surpreso - do poema There was a child went forth:

***

Em uma primeira leitura, ainda me acostumando aos temas e à forma de composição, entendi o poema como a apresentação do modo de apreensão do mundo de uma criança. A voz, no entanto, é a 3a. pessoa.
O primeiro objeto sobre o qual a criança pôs os olhos, este objeto ela se tornava. É um poema sobre o aprendizado, sobre a tomada de consciência de ser-no-mundo. No entanto, é também a narrativa do processo do conhecimento de criação e destruição do conceito identidade.
Neste processo, é importante o efeito criado pela adjetivação. A criança não apreende o trevo (forma), mas o trevo branco e vermelho (a forma e a matéria, o objeto e a impressão sensirial que dele emana). Isto é, ao mesmo tempo em que lhe é apresentado o conceito (substantivo), lhe são apresentados os sentidos (cores, intensidades sonoras, etc.). Em um primeiro momento, ao lhe darem o mundo em conceitos, a criança aprende a identidade. Logo após, é necessário refazer o aprendizado mudança, "the changes of the city and the country". "Seus próprios pais" não o são por o terem concebido, mas por terem lhe dado, todos os dias, as suas presenças em cada um dos papéis domésticos.
Por fim, como coroamento da sua inserção no mundo, de seu reconhecimento do mundo, a criança aprendeu os costumes, o que é e o que não é real. O cume do aprendizado (paroxismo da realidade) é também o ponto em que este conhecimento é questionado - "o pensamento de se, afinal, tudo pode se provar irreal". O que homens e mulheres são, caso não sejam lampejos e grãos? A esta curva no caminho da criança corresponde uma virada formal do poema. A enumeração dos conceitos, que se dava da natureza para a cultura (objeto - vegetal - animal - humanidade - mudança - pais - costumes - verdade) retorna sob uma nova perpectiva. Um novo elemento surge: "as dúvidas do dia e as dúvidas da noite" (homens e mulheres - cidade - impressões visuais - ondas - cores - cheiro). O final da viagem não é o retorno ao objeto, mas aos sentidos: o que importa não é a forma (o telhado e o caimento de suas águas) mas a luz que sobre ele incide e reflete.
A experiência que retive da leitura é a de uma criança - sempre criança, sempre se desfazendo e refazendo - que mudou, assim como hoje muda e sempre mudará. Isto é apenas o que permanece.

O poema:

There was a child went forth every day;
And the first object he look'd upon, that object he became;
And that object became part of him for the day, or a certain part of the day, or for many years, or stretching cycles of years.

The early lilacs became part of this child,
And grass, and white and red morning-glories, and white and red clover, and the song of the phoebe-bird,
And the Third-month lambs, and the sow's pink-faint litter, and the mare's foal, and the cow's calf,
And the noisy brood of the barn-yard, or by the mire of the pound-side.
And the fish suspending themselves so curiously below there - and the beaultuful colors liquid,
And the water-plants with their graceful flat heads - all became part of him.

The field-sprouts of Forth-month and Fifth-month became part of him;
Winter-grain sprouts, and those of the light-yellow corn, and the esculent roots of the garden,
And the apple-trees cover'dwith blossoms, and the fruit afterward, and wood-berries, and the commonest weeds by the road;
And the old drunkard staggering home from the out-house of the tavern, whence he had lately risen,
And the school-mistress that pass'd onher way to the school,
And the friendly boys that pass'd - and the barefoot Negro boy and girl,
And all the changes of city and country, wherever he went.

His own parents,
He that had father'd him, and she that had conceiv'd him in her womb, and birth'd him,
They gave this child more of themselves than that;
They gave him afterward every day - they became part of him.

The mother at home, quietly placing the dishes on the supper-table;
The mother with mild words - clen her cap an gown, a wholesome odor falling off her person and clothes as she waks by;
The father, strong, self-sufficient, manly, anger'd, unjust;
The bow, the quick loud word, the tight gargain, the crafty lure,
The family usages, the language, the company, the furniture - the yearning and swelling heart,
Affection that will not be gainsay'd - the sense of what is real - the thought if, after all, it prove unreal,
The doubts of day-time and the doubts of night-time - the cuirious wheter and how,
Wheter that which appears so is so, or is it all flashes and specks?
Men and women crowdingfast in the streets - if they are not flashes and specks, what they are?
The streets themselves, and the façades of the houses, and goods in the windows,
Vehicles, teams, the heavy-plank'd wharves - the huge crossing at the ferries,
The village on the highland, seen from afar at sunset - the river between,
Shadows, aureola and mist, the light falling on roofs and gables of white or brown, three miles off,
The schooner near by, sleepily dropping down the tide - the little boat slack-tow'd astern,
The hurrying tumbling waves, quick-broken crersts, slapping,
The strata of color'd clouds, the long bar of maroon-tint, away solitary by itself, the spread of purity it lies motionless in,
The horizon's edge, the flying sea-crow, the fragance of salt marsh and shore mud;
These became part of that child who went forth every day, and who now goes, and will always go forth every day.
[1855]

Whitman, Walt. Poema do livro Leaves of grass, em The portable Walt Whitman, editado por Mark von Doren. New York: The Viking Press, 1945, p. 168-170.

4.4.05

À noite, vamos nós

À noite, vamos nós, lobos e chacais, em busca de algo que não sabemos o que é. Seria pura diversão, seria algum significado para o verbo viver? Nunca chegamos a encontrar o nosso graal, raras vezes temos uma revelação. O máximo que conseguimos é o alimento alucinante, alicerce de nossas peregrinações, as migalhas mendigas que a noite deixa ao relento pelo caminho. Conseguimos à custa de muita caça, perdendo almas, vidas e destinos (continuo após o almoço)