5.8.06

VOCÊ CONHECE SAMUEL RAWET

(Textinho escrito por mim há uns dois anos)

Quando Alfredo Bosi escreveu sua História concisa da literatura brasileira, na década de 60, a literatura brasileira contemporânea era representada por autores como Guimarães Rosa e Clarice Lispector. Alguns já haviam publicado livros dez anos antes. Clarice, por exemplo, estreou na literatura aos dezessete anos com Perto do coração selvagem (1943). Outros estavam ingressando na literatura, como Rubem Fonseca, que publicara Os prisioneiros em 1963 e ainda não é citado pela obra de Bosi.
No livro de Bosi, encontramos um estranho nome, que chama atenção apesar de pouco citado: Samuel Rawet. Engenheiro, Rawet nasceu na Polônia, em 1929. Morreu em 1984, na cidade-satélite de Sobradinho, perto de Brasília. Na década de 60, era considerado um dos autores que renovavam a linguagem literária brasileira. Escreveu pequena e aclamada obra, mas hoje é praticamente desconhecido. Imigrante judeu, a maior parte de seus personagens é composta de pessoas deslocadas de seu ambiente, estranhas aos costumes, vindas de outros países ou regiões para as metrópoles brasileiras.
No momento em que a editora Civilização Brasileira reúne sua ficção com o título Contos e novelas reunidos, podemos no perguntar: por que, entre os escritores que traziam um sopro de inovação à literatura brasileira após a eclosão do modernismo, Rawet é dos menos lembrados?
Podemos encontrar um indício para solucionarmos a questão na cobertura que a imprensa brasileira deu a este relançamento. Apesar de ter obtido bastante espaço, as críticas sobre o livro se ativeram em resumir sua trágica vida, sempre à beira da loucura, em delinear as características gerais de seus personagens e em estabelecer seus parentescos literários – citando, na maior parte das vezes, Clarice Lispector.
O que, entretanto, faltou às análises é compreender aquilo que diferencia Clarice e Rawet. A questão da literatura de Clarice Lispector – que muitas de suas seguidoras não souberam apreender, apenas descrevendo o “universo feminino” – é a experimentação da linguagem. O universo feminino é um pretexto para a autora explorar a palavra. Os textos de Clarice sempre são construídos ao redor de uma idéia, de um certo desmantelamento da linguagem aos poucos realizado.
A experimentação literária de Rawet é de outra natureza, embora também tenha como um dos principais recursos o monólogo interior. Só que, em vez de utilizar o monólogo para narrar uma viagem pessoal pelo cotidiano, uma odisséia da palavra pela realidade, Rawet usa esse recurso para realizar aquilo que Mikhail Bakhtin chamava de dialogismo e polifonia. Em um estudo escrito em 1925, Bakhtin defende que os romances de Dostoievski são construídos de forma que o discurso transitasse de um sujeito para o outro. É como se a fala do próprio personagem fosse independente do autor. Para isto, o escritor deveria ter consciência da linguagem dos personagens, não só de suas características externas.
Nos contos e novelas de Rawet, há uma radicalização deste processo. O eu narrativo do monólogo interior é transferido de um personagem para o outro, como em um sonho ou numa vertigem, sem uma explicitação do efeito. As transições são marcadas, quando muito, por uma frase ou imagem recorrente que serve como ponto de referência para o leitor.
Como num sonho, em que a psique associa signos que aparentemente não apresentam relação alguma, o eu lírico de Rawet é mutante. Na verdade, é como se só houvesse um quadro, narrado no presente, quase parado. Este quadro, no entanto, traz à memória dos personagens a gama de seus pensamentos e experiências passados. Por isso, o tempo gramatical predominante não é nem o presente narrativo nem o pretérito perfeito, mas o pretérito imperfeito. Isto significa que não há, propriamente, narrativa. O presente é superfície. Abaixo está um tempo indeterminado (o imperfeito). Mais abaixo não há nada. As lembranças que poderiam determinar uma certa hierarquia, uma lógica que não a do sonho, inexistem no escuro do esquecimento. (No cinema, talvez haja um paralelo em O espelho, de Tarkovski.)
A ficção de Samuel Rawet foi negligenciada porque é difícil e radical. O que não é uma qualidade em si, mas sim um desafio a mais na descoberta desse autor ímpar.