24.6.05

Ontem eu vi o Brasil

Centro do Rio de Janeiro, em dia de semana, início da noite. Pessoas saem do trabalho, outras se dirigem a museus, cinamas, teatros. Os bares estão tomados por grupos, colegas de trabalho que - fora do teatro de produtividade, trocam de máscara - conversam coisas amenas: piadas, maledicências, clichês sobre notícias de jornal.
Um homem espera sua vez de falar pelo telefône público. Aguarda que outro, de terno, termine de anotar algo em um caderno pequeno. Onde estão essas pessoas do centro do Rio?
De uma passagem telespacial, de um portal trans-histórico, um negro surge na ruo onde não passam carros. Cabelos brancos, ombros curvados para trás, a mão esquerda segura o braço direito pouco abaixo do cotovelo (meu deus!, ciaste uma nova espécie no futuro do país, um super-homem em posição tão improvável, impossível; um homem do futuro).
"Marechal Deodoro, Floriano Peixoto, Prudente de Moraes, Campos Salles, Rodrigues Alves, Affonso Penna, Nilo Peçanha, Hermes da Fonseca", ladainhava, "Marechal Deodoro, Floriano Peixoto, Prudente de Moraes, Campos Salles, Rodrigues Alves, Affonso Penna, Nilo Peçanha, Hermes da Fonseca", ladainhava, ladrava, "Marechal Deodoro, Floriano Peixoto, Prudente de Moraes, Campos Salles, Rodrigues Alves, Affonso Penna, Nilo Peçanha, Herrmes da Fonseca, todos eles iguais".
Folk, Pueblo, People, Povo: um pouco louco, um pouco bêbado, olha para um monte de nomes que nada lhe dizem, a não ser sobre sua própria imcapacidade (inominável: o que não tem nome, o que perde o nomo, o que, por não ter nome, não age).

(isso ficou clichê)

22.6.05

Morte e ressurreição do vampiro

Raros, poucos livros realmente mexem comigo. São poucos os que imediatamente me dão vontade de escrever – escrever como seus autores, escrever sobre seus autores. A obra de que gosto é aquela que diz mais do que está escrito, e é por isto que escrevemos sobre elas: para tentar dizer um pouco do mundo escondido. É mais importante, claro, pensar do que ler. De alguns autores, não se espera nada mais do que mais do mesmo. A leitura de uma crônica do Fernando Sabino é, para mim, sempre um descanso para o pensamento. Não mexe comigo. Dos contos do Dalton Trevisan também costumava esperar sempre a mesma ironia, a mesma concisão, o mesmo universo, o onírico dos pequenos deslizes e obsessões. Muito embora as minhas primeiras leituras de seus livros tenham me abalado, minha paixão por sua obra estava estagnada.
Em que um autor pode mudar aos 80 anos? Esqueçamos sua idade – pensemos em sua obra, a contínua e crescente eliminação de palavras característica de seus contos. Leiam, por favor, Rita, Ritinha, Ritona. O que pode ter mudado em um autor de tantos livros? Por que, de repente, do onírico se fez o realista? Por que, de repente, da crescente concisão surge um retorno à narrativa? Por que a visão apaixonada das pequenas patologias cotidianas dá lugar a uma visão de horror diante do que há de podre no mundo.
O reino do vampiro está podre: Nelsinho, o delicado, “da espécie em extinção o último”, dá adeus ao mundo. Os vampiros, notívagos românticos de uma Curitiba perdida – mas também de um Rio perdido, de um mundo submerso –, somem “na noite sem fundo do esquecimento”. Em seu lugar, surge o ladrão de classe média, viciado em “craque”, que, em mais uma passagem por uma clínica de desintoxicação, admite que pensa em vender suas roupas e seu corpo para conseguir droga. “Você não pode acreditar: já fui com moço. Um cara legal”. O notívago já foi um bom moço, um vampiro que “apenas mordisca e sopra a nuca das bem-queridas”. Hoje é o estuprador da menina de nove anos – “na verdade, oito e meio” – que coleciona calcinhas.
Neste livro de Dalton Trevisan, as sutilezas e as mensagens nas entrelinhas são substituídas por uma linguagem mais direta, escassa em metáforas. O narrador que transforma em arte as situações do cotidiano dá lugar a um narrador que reproduz um universo que lhe é alheio e hostil.
Uma vez que há uma recusa em adotar uma fórmula narrativa consagrada (e copiada), D. T. faz a forma significar. A transição da forma, ou melhor, a retração de um virtuosismo, a substituição do jogo de variações sobre o mesmo tema por uma nova forma que expressa outro sentido, estes são elementos de uma consciência do choque entre o desejado e o possível. De um lado, há a antiga realidade que se ama, cujos detalhes sempre foram o material de onde o autor tirava seus contos. Do outro, há o susto de enxergar um outro mundo que foi construído em cima do antigo – e o desejo de construir uma nova forma que dê conta desta nova realidade, construída sobre a forma antiga. Mesmo na ruptura, é possível encontrar a evolução de uma forma.
É estranho que este livro aproxime Dalton de outro octogenário, Rubem Fonseca. A violência – da linguagem e da narrativa – instaura uma dúvida no próprio significado de humano. Cada conto apresenta uma resposta ou uma negativa a esta questão. O conto O cobrador, do R. F., por exemplo, aponta o engajamento como resposta para a angústia de viver em um mundo sem sentido. A personagem feminina aparece como um catalizador ou canalizador da violência do protagonista. Em alguns de seus novos contos, Dalton dá outra resposta: não há sentido algum.

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Apenas uma observação: os críticos, a meu ver, não entenderam Rita, Ritinha, Ritona. Digo que não entenderam porque acho que as obras não são tão abertas assim. Alguns o acusaram de recorrer a clichês, como o ladrão de classe média. Só esqueceram que esta obra é construída sobre uma linguagem consagrada (a da concisão), negando-a. Da mesma forma, a personagem, certamente um arquétipo, é construída sobre as ruínas de outra personagem, outro arquétipo: o vampiro um tanto romântico dos livros anteriores.
O livro de D.T. não é homogêneo, mas seus bons momentos bastam para torná-lo um ótimo livro.

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Outra analogia interessante: Dalton Trevisan e os autores das últimas gerações. Luiz Rufatto, por exemplo, em Eles eram muitos cavalos, um mosaico de um dia na cidade de São Paulo, responde de forma ainda mais radical à questão da erosão dos sentidos cristalizados. Embora haja recorrência de lugares e temas e uma certa narrativa em flashback, os 70 instantâneos do livro são a negação da História. Só o que existe é um caleidoscópico painel, perspectivado, complexo, da cidade. A única relação entre as pessoas é a coincidência de tempo e espaço.
Já em Inferno provisório (vol. 1 Mamma, son tanto felice; vol. 2 O mundo inimigo), a proposta de fazer um painel transversal do operariado no Brasil corresponde a uma visão diferente da realidade. A História é formada da síntese entre um ambiente incontrolável (a decadência dos bairros e cidades, a influência da vizinhança, os vícios alheios e herdados) e o desejo de ser livre.

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Se há uma função para a literatura – e para aquilo que podemos chamar de “pensamento literário” –, esta não é dar respostas para as perguntas. Pode ser representar uma tendência, um anseio. Pode ser abrir caminho para dúvidas, questionamentos. Pode ser complexificar os conceitos. Enfim, a função da literatura talvez seja transformar a angústia da nossa existência em uma experiência possível de ser vivida por diversas pessoas, cada qual ao seu modo (Eu gosto de citar o filme Persona, do Bergman. Tudo que é possível pensar sobre não ser idêntico a si mesmo, em coexistência de desejos contraditórios em uma mesma pessoa, da complexidade do sujeito, da esquizofrenia, tudo isso foi transformado em uma forma artística. Desde a estrutura narrativa, passando pela montagem e pelas atuações, todos os elementos possibilitam a experiência da duplicidade, do id e do ego, do desejo e da máscara.).A leitura destes livros é a experiência dessa angústia, explosões em nossa cabeça que puxam pensamentos, que fazem pulular idéias, que instigam desejos, que, contraditoriamente, dão sentido à vida.

15.6.05

Diga a palavra, e liberte-me

Em certa cidade, chegou um homem mudo, ou melhor, um homem que por mudo todos o tomavam. Os moradores tiveram dificuldade de reconhecer seu aspecto humano. Seus traços não eram aqueles a que estavam acostumados. Apesar do estranhamento, os cidadão abrigaram o forasteiro e o alimentaram. O estupor de ambos os lados durou até que um sábio do lugar reconheceu a que povo pertenciam as roupas do estrangeiro e disse a única palavra que sabia da língua desse povo: olá.
O homem, que há três meses, desde que chegara à cidade, não havia falado sequer uma palavra, passou a emitir sons ininterruptos. Apenas sons, já que ninguém conseguia decifrá-los. Os dias passaram e a continuava. Aos poucos, os habitantes da cidade foram decifrando os signos, aglutinando sons em palavras, distinguindo entonações. O que parecia homogêneo diferenciou-se; as histórias sonhadas, os absursos que aquela fala guardaria, foram revelados em palavras. Tudo o que havia de mágico naquele homem, que era uma espécie de tótem para aquele povo, foi desaparecendo. À medida que encontravam tradução para bola ou para fome, o forasteiro deixava de ser sobre-humano para se tornar apenas um estrangeiro. Ganhou um nome, adaptado de sua língua.
Quem mais se interessava pela língua do estrangeiro era o velho que primeiro travara contato verbal com o homem. Ao morrer, o velho deixou uma gramática e um dicionário da língua, ao mesmo tempo mítica e morta naquela cidade, onde apenas uma pessoa a falava. Além disso, o forasteiro entrou em uma imensa tristeza, como em um casulo que o envolvesse, um banzo de estrangeiro deportado, solitário apesar da boa acolhida. Um estudante, que consultava os livros do velho sábio, descobriu por quê. Uma palavra não havia sido transposta de uma línguia para a outra, flutuava sem referência. Um substantivo. Apaixonado pela busca à resposta do novo enigma, o estudante procurou o estrangeiro, já velho, que havia voltado a emudecer-se. De sua boca não saíram mais palavras até a véspera de sua morte. Em sua cama, antes de fechar os olhos, o homem disse ao estudante aquela palavra incomunicável.
Deduzindo de indícios relacionados à forma como a palavra foi dita, o estudante - agora professor - concluiu tratar-se de um substantivo abstrato. Colegas seus, que após o o ressurgimento do enigma voltaram a se interessar pela língua misteriosa, entraram em combate. Cada um defendia que a palavra pertencia a ma classe gramatical.
Foi quando um poeta, dentre os renomados o mais inquieto, fechou um poema com as frases

digo
aquilo que nunca foi dito

e depis escreveu a palavra icognoscível.
Críticos saudaram-no como gênio. Lingüistas detrataram-no como impostor. Filósofos discutiram-no como profeta. Apesar dos calorosos detratores, a palavra tornou-se corrente. Descrevia certo estado de espírito que nunca havia sido descrito,mas que todos sabiam o que era. Somente o poeta, com seu gênio criador, teve a habilidade de compreender o sentimento que unge todo aquele povo que, em algum lugar, fala aquela língua estrangeira.
Uma nova era surgia. Um novo etos para esta sociedade, que agora conhecia a fundo sua consciência. Esta era durou muito tempo, até que chegou à cidade um homem mudo. Ou que os cidadãos consideraram mudo. Presto, estudiosos reconheceram sua vestimenta e disseram-lhe: olá. Ao que ele respondeu. Contaram-lhe toda a história do forasteiro, seu compatriota, que da mesma forma misteriosa havia chegado, anos arás, como contaram os registros do passados, e a memória dos mais velhos, que haviam ouvido dos já mortos. Contaram-lhe o esoforço do velho em criar a gramática e o dicionário. E o esforço do estudante, depois professor, em tentar decifrar o enigma.

diga
aquilo que nunca foi dito

pediram-lhe.
Ao que ele respondeu.