22.6.05

Morte e ressurreição do vampiro

Raros, poucos livros realmente mexem comigo. São poucos os que imediatamente me dão vontade de escrever – escrever como seus autores, escrever sobre seus autores. A obra de que gosto é aquela que diz mais do que está escrito, e é por isto que escrevemos sobre elas: para tentar dizer um pouco do mundo escondido. É mais importante, claro, pensar do que ler. De alguns autores, não se espera nada mais do que mais do mesmo. A leitura de uma crônica do Fernando Sabino é, para mim, sempre um descanso para o pensamento. Não mexe comigo. Dos contos do Dalton Trevisan também costumava esperar sempre a mesma ironia, a mesma concisão, o mesmo universo, o onírico dos pequenos deslizes e obsessões. Muito embora as minhas primeiras leituras de seus livros tenham me abalado, minha paixão por sua obra estava estagnada.
Em que um autor pode mudar aos 80 anos? Esqueçamos sua idade – pensemos em sua obra, a contínua e crescente eliminação de palavras característica de seus contos. Leiam, por favor, Rita, Ritinha, Ritona. O que pode ter mudado em um autor de tantos livros? Por que, de repente, do onírico se fez o realista? Por que, de repente, da crescente concisão surge um retorno à narrativa? Por que a visão apaixonada das pequenas patologias cotidianas dá lugar a uma visão de horror diante do que há de podre no mundo.
O reino do vampiro está podre: Nelsinho, o delicado, “da espécie em extinção o último”, dá adeus ao mundo. Os vampiros, notívagos românticos de uma Curitiba perdida – mas também de um Rio perdido, de um mundo submerso –, somem “na noite sem fundo do esquecimento”. Em seu lugar, surge o ladrão de classe média, viciado em “craque”, que, em mais uma passagem por uma clínica de desintoxicação, admite que pensa em vender suas roupas e seu corpo para conseguir droga. “Você não pode acreditar: já fui com moço. Um cara legal”. O notívago já foi um bom moço, um vampiro que “apenas mordisca e sopra a nuca das bem-queridas”. Hoje é o estuprador da menina de nove anos – “na verdade, oito e meio” – que coleciona calcinhas.
Neste livro de Dalton Trevisan, as sutilezas e as mensagens nas entrelinhas são substituídas por uma linguagem mais direta, escassa em metáforas. O narrador que transforma em arte as situações do cotidiano dá lugar a um narrador que reproduz um universo que lhe é alheio e hostil.
Uma vez que há uma recusa em adotar uma fórmula narrativa consagrada (e copiada), D. T. faz a forma significar. A transição da forma, ou melhor, a retração de um virtuosismo, a substituição do jogo de variações sobre o mesmo tema por uma nova forma que expressa outro sentido, estes são elementos de uma consciência do choque entre o desejado e o possível. De um lado, há a antiga realidade que se ama, cujos detalhes sempre foram o material de onde o autor tirava seus contos. Do outro, há o susto de enxergar um outro mundo que foi construído em cima do antigo – e o desejo de construir uma nova forma que dê conta desta nova realidade, construída sobre a forma antiga. Mesmo na ruptura, é possível encontrar a evolução de uma forma.
É estranho que este livro aproxime Dalton de outro octogenário, Rubem Fonseca. A violência – da linguagem e da narrativa – instaura uma dúvida no próprio significado de humano. Cada conto apresenta uma resposta ou uma negativa a esta questão. O conto O cobrador, do R. F., por exemplo, aponta o engajamento como resposta para a angústia de viver em um mundo sem sentido. A personagem feminina aparece como um catalizador ou canalizador da violência do protagonista. Em alguns de seus novos contos, Dalton dá outra resposta: não há sentido algum.

***

Apenas uma observação: os críticos, a meu ver, não entenderam Rita, Ritinha, Ritona. Digo que não entenderam porque acho que as obras não são tão abertas assim. Alguns o acusaram de recorrer a clichês, como o ladrão de classe média. Só esqueceram que esta obra é construída sobre uma linguagem consagrada (a da concisão), negando-a. Da mesma forma, a personagem, certamente um arquétipo, é construída sobre as ruínas de outra personagem, outro arquétipo: o vampiro um tanto romântico dos livros anteriores.
O livro de D.T. não é homogêneo, mas seus bons momentos bastam para torná-lo um ótimo livro.

***

Outra analogia interessante: Dalton Trevisan e os autores das últimas gerações. Luiz Rufatto, por exemplo, em Eles eram muitos cavalos, um mosaico de um dia na cidade de São Paulo, responde de forma ainda mais radical à questão da erosão dos sentidos cristalizados. Embora haja recorrência de lugares e temas e uma certa narrativa em flashback, os 70 instantâneos do livro são a negação da História. Só o que existe é um caleidoscópico painel, perspectivado, complexo, da cidade. A única relação entre as pessoas é a coincidência de tempo e espaço.
Já em Inferno provisório (vol. 1 Mamma, son tanto felice; vol. 2 O mundo inimigo), a proposta de fazer um painel transversal do operariado no Brasil corresponde a uma visão diferente da realidade. A História é formada da síntese entre um ambiente incontrolável (a decadência dos bairros e cidades, a influência da vizinhança, os vícios alheios e herdados) e o desejo de ser livre.

***

Se há uma função para a literatura – e para aquilo que podemos chamar de “pensamento literário” –, esta não é dar respostas para as perguntas. Pode ser representar uma tendência, um anseio. Pode ser abrir caminho para dúvidas, questionamentos. Pode ser complexificar os conceitos. Enfim, a função da literatura talvez seja transformar a angústia da nossa existência em uma experiência possível de ser vivida por diversas pessoas, cada qual ao seu modo (Eu gosto de citar o filme Persona, do Bergman. Tudo que é possível pensar sobre não ser idêntico a si mesmo, em coexistência de desejos contraditórios em uma mesma pessoa, da complexidade do sujeito, da esquizofrenia, tudo isso foi transformado em uma forma artística. Desde a estrutura narrativa, passando pela montagem e pelas atuações, todos os elementos possibilitam a experiência da duplicidade, do id e do ego, do desejo e da máscara.).A leitura destes livros é a experiência dessa angústia, explosões em nossa cabeça que puxam pensamentos, que fazem pulular idéias, que instigam desejos, que, contraditoriamente, dão sentido à vida.

1 Comentários:

Anonymous Anônimo escreveu...

cara, esqueci de te escrever no e-mail... to com muita curiosidade sobre o livro novo do garcia marquez, que fala exatamente sobre um jornalista de 90 anos, ou 80... e a cervejada...

a gente se falae, abraços
Andre

9:35 AM  

Postar um comentário

<< Home