15.6.05

Diga a palavra, e liberte-me

Em certa cidade, chegou um homem mudo, ou melhor, um homem que por mudo todos o tomavam. Os moradores tiveram dificuldade de reconhecer seu aspecto humano. Seus traços não eram aqueles a que estavam acostumados. Apesar do estranhamento, os cidadão abrigaram o forasteiro e o alimentaram. O estupor de ambos os lados durou até que um sábio do lugar reconheceu a que povo pertenciam as roupas do estrangeiro e disse a única palavra que sabia da língua desse povo: olá.
O homem, que há três meses, desde que chegara à cidade, não havia falado sequer uma palavra, passou a emitir sons ininterruptos. Apenas sons, já que ninguém conseguia decifrá-los. Os dias passaram e a continuava. Aos poucos, os habitantes da cidade foram decifrando os signos, aglutinando sons em palavras, distinguindo entonações. O que parecia homogêneo diferenciou-se; as histórias sonhadas, os absursos que aquela fala guardaria, foram revelados em palavras. Tudo o que havia de mágico naquele homem, que era uma espécie de tótem para aquele povo, foi desaparecendo. À medida que encontravam tradução para bola ou para fome, o forasteiro deixava de ser sobre-humano para se tornar apenas um estrangeiro. Ganhou um nome, adaptado de sua língua.
Quem mais se interessava pela língua do estrangeiro era o velho que primeiro travara contato verbal com o homem. Ao morrer, o velho deixou uma gramática e um dicionário da língua, ao mesmo tempo mítica e morta naquela cidade, onde apenas uma pessoa a falava. Além disso, o forasteiro entrou em uma imensa tristeza, como em um casulo que o envolvesse, um banzo de estrangeiro deportado, solitário apesar da boa acolhida. Um estudante, que consultava os livros do velho sábio, descobriu por quê. Uma palavra não havia sido transposta de uma línguia para a outra, flutuava sem referência. Um substantivo. Apaixonado pela busca à resposta do novo enigma, o estudante procurou o estrangeiro, já velho, que havia voltado a emudecer-se. De sua boca não saíram mais palavras até a véspera de sua morte. Em sua cama, antes de fechar os olhos, o homem disse ao estudante aquela palavra incomunicável.
Deduzindo de indícios relacionados à forma como a palavra foi dita, o estudante - agora professor - concluiu tratar-se de um substantivo abstrato. Colegas seus, que após o o ressurgimento do enigma voltaram a se interessar pela língua misteriosa, entraram em combate. Cada um defendia que a palavra pertencia a ma classe gramatical.
Foi quando um poeta, dentre os renomados o mais inquieto, fechou um poema com as frases

digo
aquilo que nunca foi dito

e depis escreveu a palavra icognoscível.
Críticos saudaram-no como gênio. Lingüistas detrataram-no como impostor. Filósofos discutiram-no como profeta. Apesar dos calorosos detratores, a palavra tornou-se corrente. Descrevia certo estado de espírito que nunca havia sido descrito,mas que todos sabiam o que era. Somente o poeta, com seu gênio criador, teve a habilidade de compreender o sentimento que unge todo aquele povo que, em algum lugar, fala aquela língua estrangeira.
Uma nova era surgia. Um novo etos para esta sociedade, que agora conhecia a fundo sua consciência. Esta era durou muito tempo, até que chegou à cidade um homem mudo. Ou que os cidadãos consideraram mudo. Presto, estudiosos reconheceram sua vestimenta e disseram-lhe: olá. Ao que ele respondeu. Contaram-lhe toda a história do forasteiro, seu compatriota, que da mesma forma misteriosa havia chegado, anos arás, como contaram os registros do passados, e a memória dos mais velhos, que haviam ouvido dos já mortos. Contaram-lhe o esoforço do velho em criar a gramática e o dicionário. E o esforço do estudante, depois professor, em tentar decifrar o enigma.

diga
aquilo que nunca foi dito

pediram-lhe.
Ao que ele respondeu.

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