28.2.05

O grotesco e o abstrato

Em um sonho, estou no meio da água. Ao meu redor, em bolhas, a vida petrificada: a infância eterna, morta e para sempre viva. Cabeças queimadas, cenhos franzidos quando a perna impulsionava a fuga, animais. À minha esquerda, o último sopro de vida de um jovem: seu pensamento aprisionado em uma bolha, transparente e indiferenciado. Se estenderá por séculos a luta da vida com a morte como a luta da vida velha recalcitrante contra a nova vida nascente, como uma crise de revezamento*. Estático, o derradeiro orgasmo da mulher é finalmente dissecado: um grande ovo formado de ovos menores, formados por ovos cada vez menores até o átomo, o orgasmema.
Por mais que contornasse os objetos, iluminados de forma mágica na profunda imersão escura, não via mais que uma superfície em que os símbolos foram ao pouco se deixando ver. E não via nada como as velhas grávidas de terracota. O que o ser fluido unia em uma mesma figura eram o plástico, o vidro e o fossilizado, que eu mesmo havia catado em minhas peregrinações pelas periferias da minha vida. Quando mais próximo chegava do comum e do universal, pensando nisto conseguir habitar, encontrava tudo polvilhado de minha experiência.
Se tudo são signos, como sair de mim? Fuja! Fuja! Um signo só, de todos e de ninguém, o mais antigo, um rabisco na tela à minha frente. Então faço um, mais um, ainda outro. Não me dizem nada, a não ser do que já conheço – sim, porque já os vi antes – e para os que conhecem o mesmo que eu.
Certamente não é isso. A verdade é que eu nunca quis o único, mas sim unificar meus passos em diferentes desenhos a cada vez que olho para trás e que o vento move alguns grão de minhas pegadas.

Após ver as exposições dos objetos de Farnese e de telas de Tápies, dia 27 de fevereiro de 2005 no CCBB.

*Mikhail Bakhtin. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento, página 44.

Madrugada

Sempre, quando a madrugada acaba, sinto-me frustrado. O fim não poderia chegar. A madrugada não é a sucessão de inícios e fins que é o dia, este terreno marcado por limites exatos, a interminável seqüencia de horários estigmatizados - a hora de comer, de dormir, de trabalhar,de acordar ou dormir.
A madrugada não é nada disto. Ela é a suspensão do tempo - meia-noite, duas horas, quatro, seis, o sol e a lua são na madrugada o mesmo astro viglante. Por isso a madrugada frustra. Pois ela é o eterno que acaba. Com a experiência de madrugadas consecutivas, a certeza de que outra frustração sobrevirá à atual frustração cristaliza um sentimento de indestrutível angústia. Mesmo angustiados, não abrimos mão da migalha de eterno, negamos a volta à esquizofrenia diária.
(Não confundam magrugada com a night. Esta é o império do ego, da mentira, é um teatro do qual todos querem sair para colher os frutos da atuação. A madrugada é o reino da fantasia, do id, é o lugar onde podemos viver continuamente o inconsciente.)

complemento ao que meu amigo André Pecini escreveu em <">www.poraguaabaixo.blogspot.com>

25.2.05

Triste mas verdadeiro

Não consigo escrever coisa alguma. Minha atividade criativa acompanha meu tesão - ou falta dele. A decepção para mim não gera um esforço maior, mas uma astenia. O pior é que, às vezes, uma centelha de ânimo é neutralizada por uma avalanche de desapontamento.
Se, quando feliz, durmo quatro horas por dia, quando decepcionado durmo dez. Leio pouco. Transo pouco. Espero. Logo deve vir uma chama, um jorro que me mova ao menos por um mês. Mas quando virá?

18.2.05

Crônica sem tempo

Cronista do cotidiano, isto costumam escrever os jornalistas quando tem de falar de algum cronista. É como se dissessem filósofo da filosofia, pecuarista de animais. Alguns mais sofisticados citam Chronos, mas para repetir o mesmo lugar-comum.
Mas como escrever uma crônica que não vai ser lida? Que ficará aqui, no computador, e nunca será publicada. A crônica é seu meio: a imprensa. Como uma crônica sem leitor? O tempo todo tento prender um você, mas onde, como?
A crônica é um desejo de comunicar de imediato, intervir. É ser autoritário, acorrentar o leitor no lugar que o escritor quer. É literatura de jornal.

17.2.05

Felicidade

Wikipedia e mística louca na cidade, cega à aglomeração (nota).

16.2.05

Uma mensagem no meio da noite

Ontem à noite, ou hoje de madrugada, mais precisamente às 4 horas e 28 minutos, recebi uma mensagem eletrônica de um amigo meu.
Na verdade, eu só o encontrei pessoalmente uma vez. Eu morava em Icaraí, Niterói, e fui à praia tomar uma água de coco para curar uma ressaca. Ele sentou ao meu lado em um banco de pedra de frente para o mar, e me disse eu sei quem você é, eu perguntei quem sou, ele respondeu que você é uma pessoa que não sabe o que quer. Olhei para frente por um segundo e, quando voltei meu olhar, o velho - ele não era só velho, era barbudo, grizalho, se vestia de farrapos e estava sujo - tinha sumido, levando meu coco. Tinha desaparecido. Procurei por todos os lugares e não o achei.
Esta é a primeira vez que ele entra em contato comigo depois do furto. O título da mensagem era MEU BLOG. Só tinha uma frase, um endereço eletrônico. Era um blog. Mas não era um simples blog. Era o blog com o qual sonho. Era a literatura elevada ao máximo de sua potência na internet. No fundo, ao mesmo tempo, havia várias imagens mas sua cor era simples como uma página em branco. Sua fonte parecia uma condensação de todas as mais belas que existem. A página estava em constante mudança, mas mantinha a identidade visual. E os textos... Consciente, o meu amigo escrevia da forma mais literária o possível, mas com cada letra se integrando ao meio, à página, como se fosses os impulsos gerados pelo computador que criassem combinações de palavras que, por um acaso, faziam sentido completo.
Infelizmente, apaguei a mensagem de minha caixa de entrada, às 6 horas e 55 minutos, depois de ler cada pixel. Não desejo nunca ver novamente o blog. É insuportáver ter em mente algo que nuca vou conseguir fazer.

13.2.05

À beira do abismo

Contando: um, dois, três (para tomar a decisão); um, dois (para virar o braço); um, dois, três (aproximadamente, para o pára-choque cortar as pernas, que não vejo). Claro, só atropelei porque senti ódio. Odeio a miséria e o futuro, o paraplégico e a criança. Odeio só por um segundo, antes de me arrepender – mas, desta vez, à beira do abismo, pulei antes de sentir medo.

***

paLAvra, FRAse, GRIto, suspiro, oFENsa, GRIto, cchhoorroo. Tantas vezes vi no cinema. A histeria é curada com um tapa no rosto. Isto que ela faz, no entanto, é consciente. Me soltei. Um instante antes da queda, pensei que bom se ela entendesse que esses socos não são sinceros – mas, desta vez, só depois de pular é que temi o abismo.

***

Peguei na camisa, desenrosquei a tampa, bebi um gole. Olhei o asfalto, a praia, a lagoa. O segredo é não dar tempo à reflexão – mas só é possível ter prazer se for até o final. O único prazer verdadeiro é o ilimitado, o impacto de voltar a ser matéria.

11.2.05

Quarta-feira de cinzas

Pensando em Balhtin e em minha vida

Ontem não foi dia de trabalho. Nem anteontem. Mas amanhã será. Ontem eu me vesti de rei, e o rei se vestiu com minhas roupas, e depois lhe concedi um abraço. E eu pude, por um momento, esquecer de meus problemas, maiores do que os do rei, e ele pode esquecer os problemas monárquicos, maiores do que os meus.
Amanhã voltaremos para nosso lugar. Eu estarei sonhando que meu trabalho é aquele que eu amo, que sei escrever e que fico compenetrado diante de importantes papéis que todos lerão; que não sou mais o analfabeto que aperta botões e que tenta de todas as formas aprender e ser bom e alardear a magnífica competência literária e argumentativa latente, inexplorada. E estarei ansioso para receber novas promessas, novos "tenho certeza de que você será grande assim que você souber escrever, e eu te ensinarei".
Enquanto isso, o rei estará pensando em como o mundo seria bom se todos fossem como ele, e não apertadores de botões analfabetos.

4.2.05

Auto-análise

- Por que não escreve mais?
- Porque me falta rua.
- E se eu te der isto?
- Me faltará embriaguez.
- E se isto te der?
- Me faltará livro?
- O que mais?
- Dinheiro, ou a falta dele.
- É tudo?
- Ser organizado.
- Por fim...
- Criatividade.

3.2.05

Os pigmeus

Já estou acostumado com aquele trajeto. Dependendo do meu estado de espírito, da hora e do dia, escolho uma das combinações de linhas de ônibus e de metrô que podem me levar à Baixada Fluminense. Desci do ônibus e atravessei a estação de trens Central do Brasil. Caminhava lado a lado com uma multidão. Encontrei a fila que procurava. Tive de esperar pelo segundo ônibus da linha para ir sentado. Não adiantaria correr. A cidade funciona como uma máquina complexa em sua desorganização: roda sempre igual e, nas poucas vezes em que atrasa, é porque uma peça quebrou: um acidente, um assalto, um atropelamento, uma guerra entre criminosos. No resto do tempo, nada faz qualquer pessoa atrasar.
Ao meu lado, no banco do ônibus, estava um negro magro, um pouco tenso, cabelo cortado e bem barbeado, blusa de gola pólo para dentro da calça. Tentei dormir para não pensar que o homem ao meu lado estaria voltando para casa, vindo de uma entrevista de emprego. Mas minha namorada ligou. Sempre me exasperava quando ela me ligava para reclamar de meu atraso quando tanto eu quanto ela sabíamos que eu estava fazendo o máximo para chegar cedo.
Depois que desliguei, não consegui mais fechar os olhos. Entre velhos que mal conseguiam ficar de pé, ambulantes com alguma deficiência física e outras pessoas mais ou menos saudáveis, subiu para o ônibus um homem de uns trinta anos. Sua perna estava inchada. Eu ouvia sua história, que ele fazia questão de contar a todos que lhe davam atenção. Não tinha conseguido atendimento em todos os hospitais a que tinha ido em mais de um mês. A perna tinha quebrado em um acidente qualquer. Talvez ele tivesse ido ao lugar errado – ao menos é isso que uma senhora dizia a ele –, mas o que me impressionava era que, na minha ignorância de medicina, eu tinha certeza de que ele teria a perna amputada.
A cidade, quantos já disseram, assemelha-se a um formigueiro. Para mim, no entanto, a cidade era outra coisa. Quando comparo a minha infância no interior de Minas com meu presente no Rio de Janeiro – ou seja, quando penso no progresso –, sinto que a Cidade faz questão de exibir todas as suas deformidades, seus amputados, seus deficientes mentais, seus desempregados, seus miseráveis.
Fechei os olhos para não pensar nisso. Afinal, deveria estar bem-humorado ao descer do ônibus. Outra imagem, no entanto, me veio à mente. Quando estava na fila, nos cinco minutos que esperei pelo ônibus, duas pessoas vieram em minha direção. Tão logo passaram da esquina e entraram no meu campo de visão, não pude mais desviar meus olhos. Acho que os psicólogos, antropólogos, assistentes sociais, sociólogos e organizações não-governamentais devem estar errados: para mim a miséria e a deficiência não são invisíveis, são obscenas. Aqueles dois pigmeus, encolhidos pelo tempo, desfilavam à minha frente. A mulher em seu passo vagaroso, o homem com a mão direita apoiada nas costas, na base de sua corcunda. Eles desfilavam suas mazelas para mim. Devagar, para que eu pudesse contemplar, dar graças a Deus por eu ser normal. Repetindo o escritor Italo Calvino, fiz a mim a pergunta: e se os normais forem eles?
Comecei a olhar em torno para ver se aquela multidão à minha volta tinha notado meu interesse, com certeza agressivo, pelos dois velhos. Era como se o olhar que os dirigia inquirisse: com que direito vocês zombam dos meus problemas, de minha insatisfação com as cobranças da namorada, com meu trabalho, com minha profissão? Com que direito expõem seus próprios problemas com tanta resignação. Isso porque, apesar de tudo que ostentavam, que para mim seria insuportável, os dois travavam animada conversa.

1.2.05

Os autores e eu

Na cidade em que nasci e em que passei meus primeiros quinze anos, não havia escritores nem músicos de sucesso. Na lombada dos livros que lia e na capa dos discos que ouvia, os nomes eram rótulos de produto. A aura, creio eu, longe de inimiga do consumo, era seu maior incentivo: aqueles nomes serviam como algo que atestava que esses escritores e músicos não eram como o padeiro que gritava à janela de manhã, como o médico que ia à casa de meu pai tomar uma dose de uísque.
O contato mais próximo com um desses rótulos vinha de uma coleção de livros de um tio da minha mãe, datilografados, muitos encadernados como brochura. Eram tratados sobre direito, matemática, teologia. Um pretendia provar matematicamente a existência de Deus. Daria boa ficção científica.
Estamos ligados ao nosso mundinho mais do que pensamos. Espanta-me, hoje, pensar como a arte, para mim, estava ligada à figura do gênio. Nunca pensei que um autor de que gostasse poderia escrever um livro ruim. Imaginava que nunca laguem pudesse criticar Machado de Assis ou Dalton Trevisan. Hoje, ainda me sinto um pouco ofendido quando leio que o Ruben Fonseca não é o mesmo, que a Clarice Lispector é um embuste, ou até mesmo que Os três mosqueteiros é um livro com pouco interesse.
Nietzche escreveu, referindo-se a Wagner, que a mais bela flor pode nascer do estrume. Grande ensinamento para mim. O autor de um ótimo livro pode ser um chato, ou um cara maneiro pode lançar um livro insignificante. Eu mesmo posso ter uma boa conversa, ser engraçado numa mesa de bar, ler livros legais e me esforçar, mas fracassar em minhas investidas nesse campo simultaneamente infinito em possibilidades e cruel com os incapazes, a literatura.