3.2.05

Os pigmeus

Já estou acostumado com aquele trajeto. Dependendo do meu estado de espírito, da hora e do dia, escolho uma das combinações de linhas de ônibus e de metrô que podem me levar à Baixada Fluminense. Desci do ônibus e atravessei a estação de trens Central do Brasil. Caminhava lado a lado com uma multidão. Encontrei a fila que procurava. Tive de esperar pelo segundo ônibus da linha para ir sentado. Não adiantaria correr. A cidade funciona como uma máquina complexa em sua desorganização: roda sempre igual e, nas poucas vezes em que atrasa, é porque uma peça quebrou: um acidente, um assalto, um atropelamento, uma guerra entre criminosos. No resto do tempo, nada faz qualquer pessoa atrasar.
Ao meu lado, no banco do ônibus, estava um negro magro, um pouco tenso, cabelo cortado e bem barbeado, blusa de gola pólo para dentro da calça. Tentei dormir para não pensar que o homem ao meu lado estaria voltando para casa, vindo de uma entrevista de emprego. Mas minha namorada ligou. Sempre me exasperava quando ela me ligava para reclamar de meu atraso quando tanto eu quanto ela sabíamos que eu estava fazendo o máximo para chegar cedo.
Depois que desliguei, não consegui mais fechar os olhos. Entre velhos que mal conseguiam ficar de pé, ambulantes com alguma deficiência física e outras pessoas mais ou menos saudáveis, subiu para o ônibus um homem de uns trinta anos. Sua perna estava inchada. Eu ouvia sua história, que ele fazia questão de contar a todos que lhe davam atenção. Não tinha conseguido atendimento em todos os hospitais a que tinha ido em mais de um mês. A perna tinha quebrado em um acidente qualquer. Talvez ele tivesse ido ao lugar errado – ao menos é isso que uma senhora dizia a ele –, mas o que me impressionava era que, na minha ignorância de medicina, eu tinha certeza de que ele teria a perna amputada.
A cidade, quantos já disseram, assemelha-se a um formigueiro. Para mim, no entanto, a cidade era outra coisa. Quando comparo a minha infância no interior de Minas com meu presente no Rio de Janeiro – ou seja, quando penso no progresso –, sinto que a Cidade faz questão de exibir todas as suas deformidades, seus amputados, seus deficientes mentais, seus desempregados, seus miseráveis.
Fechei os olhos para não pensar nisso. Afinal, deveria estar bem-humorado ao descer do ônibus. Outra imagem, no entanto, me veio à mente. Quando estava na fila, nos cinco minutos que esperei pelo ônibus, duas pessoas vieram em minha direção. Tão logo passaram da esquina e entraram no meu campo de visão, não pude mais desviar meus olhos. Acho que os psicólogos, antropólogos, assistentes sociais, sociólogos e organizações não-governamentais devem estar errados: para mim a miséria e a deficiência não são invisíveis, são obscenas. Aqueles dois pigmeus, encolhidos pelo tempo, desfilavam à minha frente. A mulher em seu passo vagaroso, o homem com a mão direita apoiada nas costas, na base de sua corcunda. Eles desfilavam suas mazelas para mim. Devagar, para que eu pudesse contemplar, dar graças a Deus por eu ser normal. Repetindo o escritor Italo Calvino, fiz a mim a pergunta: e se os normais forem eles?
Comecei a olhar em torno para ver se aquela multidão à minha volta tinha notado meu interesse, com certeza agressivo, pelos dois velhos. Era como se o olhar que os dirigia inquirisse: com que direito vocês zombam dos meus problemas, de minha insatisfação com as cobranças da namorada, com meu trabalho, com minha profissão? Com que direito expõem seus próprios problemas com tanta resignação. Isso porque, apesar de tudo que ostentavam, que para mim seria insuportável, os dois travavam animada conversa.

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