12.5.06

A comerciante

— Essa não sou eu — ela disse, virando o rosto para o lado e dando um suspiro.
— Com certeza, amor.
Ela olhava para uma outra mulher, que sorria para ela, os dentes brancos — mais brancos que os dela —, os olhos negros — mais negros que os dela —, mas o seu nome estava lá, agarrado àquela mulher que não, não era ela.
— Eu não sou essa — ela disse, e inspirou forte, enquanto empurrava o travesseiro.
— Tudo bem, meu amor.
— Nada contra você, que é bonita, mais bonita do que eu, mas você é ela. Por que, então, você aprisiona o meu nome? — mas isso ninguém ouviu.
— Certamente, você não deve estar com algum problema. Seu nome foi vendido para mim por dois mil, quinhentos e quinze pés de coco, assim mesmo, por extenso, como está escrito aqui, neste documento.
— Mas não consigo ler o que está escrito. E eu não assinei esse papel, que não é um papel, mas um pedaço de madeira.
— Uma vez que aqui estão marcas, que eu consigo ler, isto é um papel, superfície para ser escrita, e não se fala mais nisso — retrucou, ríspida (finalmente, estava demorando para a cordialidade acabar — a cordialidade é sempre superficial), a mulher que se agarrava ao nome, que parecia bastante satisfeito de estar juntinho daquele corpo.
— Mas eu não assinei — repetia a mulher, que não era ouvida.
— Não assinou, mas respirou três vezes com a narina direita e três com a esquerda quando você aspirava aquele pozinho branco aqui em cima dessa tabuleta (ou tableta, diriam alguns tradutores). Se você tivesse recusado, teria respirado todas as vezes com a mesma narina, correria o risco de passar daqui pruma melhor, mas códigos são códigos.
— Puta que pariu — resumiu a mulher, e graças a deus não foi ouvida, porque o homem não gostava nada de palavrões quando conversavam com pessoas que eles não conheciam, mesmo que elas tivessem comprado o nome de sua mulher. — Quem sou eu?
Dessa vez o homem ouviu, e se sentiu obrigado a responder, de improviso e olhando para a câmera:
— Acho que, das duas, uma: ou ela está fazendo um apanhado de letras de canções e de frases de romances do Chico Buarque ou ela está em um processo epifânico de reconhecimento da falência dos conceitos iluministas de identidade, sujeito do conhecimento e verdade. Daqui a pouco, penso que ela vai discorrer sobre o conceito de alethéia na obra de Haráclito, a partir da exposição feita por Heidegger em seu livro sobre o filósofo grego.
Agora foi a mulher quem não ouviu. Sorte, porque ela não gostava de discussões epistemológicas, gostava apenas do conhecimento transmitido pela narrativa.
— Nunca vi um nome ser vendido, não sabia dessa possibilidade. Tenho certeza de que as leis internacionais não permitem que se vendam objetos que não são possíveis de entrega, como a alma. Só podemos vender o que pode ser entregue, como a virgindade. Como entregar-te-ei meu nome?
— Caraíba usa mesóclise? Não sei como faço negócio com alguém tão pedante assim. Mesmo assim vou responder sua pergunta. Olhe aqui: o seu nome já está comigo. Pronta entrega. Não precisa se preocupar com isso.
— Preciso de um espelho para saber, afinal, que sou eu agora. Depois, quem sabe, não me dou um nome novo?
— Antes não quer ver os dois mil, quinhentos e quinze pés de coco?
— Tudo bem. O que não tem remédio...
Quando viu os dois mil, quinhentos e quinze pés de coco, todos semelhantes a pés de moleques, daqueles que machucam o pé todo, feitos de uma massa combinada da fibra e da carne do coco, a mulher se perguntou qual seria a finalidade de tudo aquilo. Mas ninguém ouviu, nem ela mesma.
— Deixa, então, que eu me dê um nome...
— Bem, para você ter um nome, você precisa abrir um processo no cartório, explicando que você está sem nome porque vendeu o seu e, sabe como é, ninguém existe realmente na sociedade sem um nome.
— Você está falando igual a mim... vendi também minha identidade?
— Quanta inexperiência... Você leu também as letrinhas miúdas? Ah, esqueci, você não saber ler.
— Tudo bem. Só mais uma coisa. Como eu tenho agora dois mil, quinhentos e quinze pés de coco, posso depois trazer meu novo nome e minha identidade, que ainda vou ter que construir, para você comprar por dois mil, quinhentos e quinze mãos de coco?
— Infelizmente não tenho mão de coco. Mas conheço alguém que pode fazer essa transação. Você quer o telefone dela?
— Dois, dois, três, quatro... — lia a mulher. Ouvindo isso, o homem, deitado ao lado dela, se perguntou:
— Mas ela não era analfabeta?

2 Comentários:

Blogger A digestora metanóica escreveu...

atualiza pelamordedeus que eu não aguento mais fazer contas com pés de coco.
beijo

10:14 AM  
Blogger Luciana Gondim escreveu...

Lu,

Pena só agora ter te descoberto virtualmente...

Estou boquiaberta com a crônica. Quero mais! Mais! Mais!

Beijo

3:12 PM  

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